Sentei-me aqui para escrever. Mas não sei sobre o quê (normalmente sei, acreditem). Eu podia falar sobre Beslan, o quanto me faz sentir pequenina. Sobre as minhas arrumações e a dor que me causa deitar fora coisas que tenho mantido, algumas há mais de 30 anos. Sei lá… podia falar sobre átomos e moléculas e se a química nos rege (ou não) todos os sentimentos. Podia falar sobre politica… Não. Por acaso, sobre politica não podia falar. É demasiado racional para mim. Mas não me apetece escrever sobre nenhum destes assuntos. Sinto-me mais à-vontade com coisas pequenas. Quanto mais pequenas… maior eu as consigo fazer. Hummm!... deixem-me pensar!... Ok!... já sei. Vou regressar ao passado. Calma. Não é mais nenhum testemunho sobre situações inacreditáveis, que quase nos obrigam a acreditar no destino. Vou escolher uma coisinha mais leve (também… não preciso de me esforçar muito, a avaliar pelo peso do meu último regresso ao passado). Vou regressar à minha infância. Partilhar convosco algumas memórias que retenho dela.
Nasci e cresci em África. Moçambique. Muita liberdade. Muita brincadeira no quintal e mesmo na rua. Éramos 7 amigos inseparáveis. Umas vezes mais amigos que outras, mas sempre inseparáveis. Aliás, quando nos separávamos, só fazíamos porcaria. Por isso, quanto mais juntinhos, melhor. Por acaso… agora pensando nisso… os miúdos costumam juntar-se para fazer tropelias e nós de facto, éramos ao contrário. Juntávamo-nos para fazer rádios com pedaços de madeira e caricas (claro que não funcionavam). Para fazer cabanas com os ramos que eram podados das árvores. Eu cá, não alinhava muito nesta brincadeira. Aparecia sempre com cada gafanhoto mais grande… Ninguém me conseguia convencer a entrar na cabana, por isso o Manel (por quem eu estava terrivelmente apaixonada) fazia-me sempre um quintal e eu entretinha-me a tratar da horta, com capim e laranjas velhas. A fingir, pois claro… Bom, as laranjas, às vezes marchavam. Eles lá se ocupavam da cabana. Sempre debaixo das instruções do Manel, que era o mais velho. Eu sentia-me sempre uma privilegiada, que a mim o Manel não me dava ordens e quando a cabana estava pronta, levava-me pela mão só para a espreitar. Mais… impedia que os outros me empurrassem lá para dentro… que eu aterrorizava-me com a ideia de entrar na cabana e cair-me um gafanhoto em cima. O Manel era mesmo porreiro. Por isso é que eu estava apaixonada por ele. Porreiro e gordo. Muito gordo. Mesmo muito gordo. E não é que eu não me importava nada? Quer dizer… não me importava nada, não é bem assim. Importava-me muito que ele andasse em tronco nu. Tinha umas mamas maiores que as da minha mãe. Dessa parte nunca gostei. Quando ele aparecia em tronco nu, estragava-me o dia. É que a minha melhor amiga, a São, fartava-se de me gozar. Inferiorizava o meu mais que tudo. Arreliava-me até às lágrimas, a malvada. Bom, mas a mãe do Manel salvava-me sempre. Lá aparecia a meio da manhã ou da tarde com uma t-shirt. Trazia sempre e também, uns biscoitos de azeite. Uma caixa redonda de lata, cheia, que o Manel colocava ao colo. Nem era preciso lavar as mãos. Sentávamo-nos todos à beira do passeio a comer os biscoitos. Eu e o Manel, comíamos sempre mais. O Manel, por razões óbvias… pois, tinha um apetite voraz. E eu, eheh… porque era a sua protegida. Agora pensando no assunto… acho que era a forma que ele encontrava de me agradecer a paixão que lhe tinha. Porra!... não é qualquer miúda que se apaixona por uma bisarma daquelas. Ainda hoje adoro biscoitos de azeite. Fritos, como fazia a mãe dele.
Mas também brincávamos a outras coisas. Lembro-me que uma das minhas brincadeiras preferidas, era o jogo da verdade e da mentira. Cada um contava uma história que os outros tinham que adivinhar se era verdadeira ou falsa. Quem menos conseguisse ludibriar os adversários perdia. O Zeca que era o mais ferrenho e não gostava nada de perder, ás vezes fazia da mentira, verdade e da verdade, mentira. Nessa altura, íamos todos a correr à procura da mãe, para tirar a história a limpo. Se ela não soubesse da história, é porque era mesmo mentira. Aí, o Zeca ficava danado. Por acaso, o Zeca era o que melhor histórias contava. Desde tapetes voadores a aterrar em cima do guarda-fatos, a viagens pendurado num chapéu de chuva, valia tudo. Mas o mais engraçado é que ele queria que nós acreditássemos nestas histórias e dizia mesmo para irmos perguntar à mãe, se era verdade ou não. Hoje é advogado, o Zeca. Mas ia sendo padre. Já cá em Portugal, apaixonou-se por mim. Escrevia-me cartas em código. A sério, inventou um alfabeto próprio. A cada letra do nosso alfabeto, fez corresponder um símbolo. O miúdo tinha mesmo imaginação. A contar histórias e a romancear. Ups!... não é a mesma coisa?... Bom, mas aquilo do “nosso alfabeto” era muito giro. É que tantas foram as cartas que trocámos, que já nem era preciso ir ver a cábula, que ele teve o cuidado de mandar para casa de uma amiga minha (que era para não ser interceptada). Agora não me consigo lembrar de quem tínhamos nós, medo. Se da minha mãe, se do meu irmão mais velho. Bom, isso agora também não interessa. A piada estava mesmo naquele secretismo todo. Trocámos promessas de amor em código, como gente grande. Tudo acabou quando passados uns 2 anos, ele foi a minha casa. Ele, o irmão e os pais. Estavam todos bem. Menos ele. Apareceu com umas calças castanhas de vinco, um palmo acima do tornozelo, apertadas com um cinto em cima do estômago. E o cabelo? Eu não sei se aquilo era gordura ou brilhantina, mas que era piroso, lá isso era. Porra!... que desilusão. Andava eu a trocar promessas de amor com um bimbo naqueles?!... Hoje é advogado, o Zeca. Já tinha dito, não já? Será que ainda usa calças acima do tornozelo? O cinto a apertar o estômago, não deve usar. Sim, que com 42 anos, já deve ter o estômago bem dilatado, por isso o cinto tem que ficar por baixo. Valha-nos isso, chiça!...
Bom!... Está-me a dar o sono. Vou ver se durmo. Beijinhos pessoal.