domingo, agosto 29, 2004

Perdoar

Entre dois espelhos me escondo.
Não vejo a minha
E a tua dor.
Reduzo a um grão de pó
Aquilo a que tu chamas amor.

Ah, sim!... amei-te.
Fechei os olhos e fui, de mão dada
Onde me levaste.
Só percebi que estávamos perdidos
Quando finalmente paraste.

Olhei para trás e não vi
Rasto de mim própria.
Não. Não.
Nunca consegui compreender
Essa tua solidão.

Recolho-me. Abrigo-me.
Fujo para a frente
Quando te vejo a avançar, assim
Tão de repente.
Detém-me esta onda enfurecida
Que me impede de abraçar
De amar.

Quanto tempo é preciso
Para eu conseguir perdoar?

Regresso ao passado III


Fevereiro 1992 – Sábado à noite. Maria segue atrás do médico pelo corredor da maternidade. Grávida e infeliz. As lágrimas correm-lhe indiscretas, pelo rosto. O médico detém-se a uma porta e convida-a com um gesto, a entrar primeiro que ele. Pede-lhe que se sente. Diz-lhe que não deve estar assim. Não é bom para o bebé. “Vamos ver o que se passa”, acresceta. Sétima ecografia. Durante meia-hora, nenhum dos dois, profere uma única palavra. Maria recorda as últimas horas. Tinha sabido que o seu bebé não estava bem, na tarde anterior. Problemas na coração, nos ossos da cabeça, desses sabia. Mas havia mais. Decidiu não seguir as indicações da médica. Teria que esperar mais uma semana para conhecer melhor a situação. Deu por isso entrada pelas Urgências, daquela que considerava a melhor maternidade, mesmo sem ter acesso legitimo a ela, mesmo sem a sua situação ser considerada urgente, e em boa hora o fez, pensava. Tinha sido difícil, mas tinha conseguido convencer os médicos a fazer nova ecografia. Ninguém sabia que ali estava. Não tinha dito nada a ninguém. Foi sozinha. Um dos médicos melhor credenciados, um dos mais avançados aparelhos… e ali estava ela, à espera de respostas. Quando o médico terminou, confirmam-se todas as suspeitas. Era impossível, com tantas malformações, um feto sobreviver fora do útero. Nem compreende como tinha chegado a avançado estado de gestação. Era inacreditável, com tanta ecografia feita, só agora se detectarem estas anomalias. Era inacreditável. Maria ia perder o bebé. Marcou-se nova ecografia, desta vez com um cardiologista. Mais uma cordocentese para recolha de sangue do bebé. Tudo para daí a 2 dias. Encaminhamento para Consulta de Genética e Centro de Diagnóstico Pré-Natal. Aconselhamento de pedido de interrupção voluntária de gravidez. O feto está em sofrimento. O coração não vai aguentar muito mais tempo. Maria seria poupada ao desgaste dos 2 últimos meses de gravidez. Nada lhe parecia fazer sentido.

Ainda hoje, não compreende. A gravidez tinha começado mal, de facto. Foi seguida em Alto Risco, até aos 3 meses. Se tinha conseguido “segurar” o bebé até essa altura, estaria livre de perigo, a partir daí. Foram despistadas as doenças de família. Recorda novamente a investigação que tinha feito sobre a doença da sua avó Emília. Tinha também conversado com o médico da sua mãe. Nada de mal lhe podia acontecer, a doença não era sequer hereditária, apenas de tendência familiar, como quase todas. Por isso não chegou a fazer Amniocentese. Cinco ecografias, feitas pela mesma médica, quase todas feitas a pedido de Maria, ao seu médico. Concordou sempre. Carinhoso, cuidadoso, tentando tranquiliza-la.

Tinha perdido o bebé, sim. Sara, se chamaria se vivesse. Sara, ficou para sempre. Lembra-se de não saber do que sentia falta, após a interrupção da gravidez, se da barriga, se do bebé. Se não tinha barriga, devia ter bebé. Se não tinha bebé, ainda devia ter barriga. Lembra-se da conversa que teve com o médico a quem pediu alta para poder estar presente aquando do funeral. Como ele tentou anima-la. Uma dor profunda que se arrastou durante dois meses e foi atenuando muito lentamente, após essa data. Nessa altura, já Maria tinha na sua posse, o Relatório de Genética, com descrição de Exame Necrópsico: …”encefalocelo occipital, fenda palatina bilateral, malformação dos pavilhões auriculares, malformação dos membros inferiores, defeito de septo aurículo-ventricular incompleto, rotação incompleta do intestino, múltiplos baços acessórios, rim direito pequeno, vesícula biliar parcial incluída no parênquima hepático e localizada à esquerda do ligamento redondo.

Arrepia-se. Fecha os olhos demoradamente. Ainda custa a crer. Ao final de doze anos, lembra-se como se fosse ontem, da reacção da médica que lhe fez as cinco ecografias, quando lhe deu uma fotocópia do Relatório de Genética. Antes de o receber, escusava-se com desculpas e lamentos. “Às vezes é difícil ver as malformações”, disse. Maria, estendeu-lhe a folha de papel. Passados breves segundos, a médica escondeu a cara entre as mãos e não a voltou a descobrir. “Oxalá, não se volte a enganar desta maneira”, não se lembra se disse, se pensou apenas, antes de sair do consultório. A médica metia dó. Provavelmente nem terá dito nada, por isso mesmo.

Afinal, agora há distância de tantos anos, este erro parece-lhe mais esbatido. A médica cometeu um erro sim, punível até com pena de suspensão, não fosse ter sido amnistiada pela Inspecção-Geral de Saúde, sabe disso. Contudo, a punição máxima, teve-a no momento de confronto com Maria e com o relatório que a mesma lhe colocou nas mãos. Mas não foi responsável pelas anomalias da Sara. Estas definiram-se no momento da concepção. Algo correu mal. Nunca se saberá o quê.

Guarda tudo. Triste mas tranquila. Ultimamente, tem dado à própria vida, um valor diferente do que dava. Efémero, por isso mais valorizável. E hoje, nesse preciso momento, parece-lhe tão fugaz, qualquer umas das vidas que percorreu, folheando papéis, recordando situações de tristeza, de dor, de termo. Deveria talvez, começar por acreditar no destino. Mas, não. Está decidida a continuar a percorrer um caminho de escolha livre, sem conformismo de especial inibição. Não se pode ficar à espera de coisa nenhuma, sob pena de não se viver na maior plenitude possível.

sábado, agosto 28, 2004

Regresso ao passado II


Lembra-se de subir as escadas, devagar, sem pressa de chegar. Contudo, ansiosa, expectante. Conhece aquele Serviço de Neurologia, como a palma das mãos. A sua mãe esteve lá internada, durante meses, pouco tempo antes desse dia. Na mesma enfermaria onde tinha estado a sua avó Emília, 22 anos antes. Esta coincidência é dolorosa, como o conceito de destino, em que nunca quis acreditar. Sem fuga possível. Angustiante. Redutor. Sabe a que sala se deve dirigir, conforme conhece todos os caminhos que a ela vão dar. Os de acesso público e ou outros, em que circula sem autorização. Nunca ninguém lhe disse nada. Nunca ninguém lhe chamou a atenção. Percorre aqueles corredores, usa qualquer um dos elevadores, entra em qualquer sala, como se da casa dela se tratasse. Mas, nesse dia, foi as escadas de acesso público que subiu. Como qualquer pessoa. Como qualquer visita. Ia à procura da médica de que lhe tinha falado no dia anterior, a funcionária da secretaria. Sabia que estava à sua espera. Tinha combinado com a enfermeira. E a médica já sabia do que se tratava. Entrou e fez-se anunciar. Surgir a médica. Já a tinha visto, sim. Mas não sabia que era ela. Cabelos grisalhos. Óculos na ponte do nariz. Ainda de bata branca. Estava de saída, Maria sabia. Simpática e acessível, convidou-a a sentar-se e começaram a conversar. “Não. Paramiloidose, não era. Seguramente”, disse a Maria. Explicou-lhe que essa doença, compromete também os membros superiores. “E ela tinha umas mãos de ouro”, acrescentou. Bordava, fazia crochet, tricot, até à máquina escrevia. Não. Paramiloidose, não. Insistia, convictamente. Tinha tido tempo suficiente para se manifestar nas mãos e nunca se manifestou. O que tinha sido, não sabia. “Nunca se soube”, repetia. Maria estava tranquila. Esboçava até um sorriso nos lábios, enquanto ouvia a médica. Contava-lhe histórias, que revelavam uma avó bem disposta e alegre. Faceta que desconhecia. Sempre lhe contaram histórias tristes. Histórias sob um cenário de guerra, na infância da mãe e do tio. Episódios ocorridos já na fase da doença, causadores de grande sofrimento para quem os contava. Conhecia agora, uma avó diferente. Estimada por todos. Forte e lutadora. “Sempre bem disposta. Nunca se deixava ir abaixo.”, dizia a médica. Maria deliciava-se. Curiosa, ia fazendo perguntas. A médica não revelava pressa. Assim estiveram algum tempo, findo o qual, juntas, desceram as escadas. Despediram-se ao fundo das mesmas. Maria abandonou o serviço, seguiu o seu caminho. Paramiloidose, não era. Poderia aceitar esta observação como certa. Aceitou-a mesmo.

Ia passando uma a uma, cada folha. Deteve-se numas fotocópias propositadamente agrupadas com um clip. Separou-as. Palavras sublinhadas a marcador de cor. Correu os olhos sobre elas. Periarterite Nodosa (Doença de Kussmaul) – Rara e potencialmente fatal inflamação das pequenas artérias. Resulta frequentemente em trombose arterial e morte de tecidos circundantes. A causa da Periarterite Nodosa é desconhecida. Doença de tendência familiar, verifica-se geralmente em pessoas com idade entre os 25 e os 50 anos, e é mais vulgar nos homens que nas mulheres, leu. Continuou. Hereditariedade. Mais definições da doença. Lembra-se de ter passado algumas tardes em bibliotecas, recolhendo estas definições. Pousou as folhas e olhou em frente, retrocedendo no tempo.

Fevereiro 1982 – Ouvia o médico da sua mãe. Usava termos complexos de difícil compreensão referindo-se ao diagnóstico da doença. No rosto de Maria, o desespero. Era mau, aquilo que ouvia. Não estava ali mais ninguém. Tinha que compreender tudo para depois conseguir explicar. À mãe, internada na enfermaria do fundo. Ao pai que não teve coragem de a acompanhar, por adivinhar as más notícias. Aos irmãos, ainda mais jovens. O médico ia dulcificando a voz, à medida que se apercebia do estado de espírito dela, a ceder, vertiginosamente. Queria ser forte e não era capaz. O médico explicava-lhe o que ia acontecer. Como se teriam que preparar. Por fim, convidou-a para se sentar. Deram 3 ou 4 passos até ao banco corrido, mais próximo, e sentaram-se. Maria perguntou quanto tempo faltava até ao fim. 6 meses, 2 anos. Não sabia. Tudo dependia de muita coisa. Tinha que ajudar a mãe. Tinha que ajudar o pai. Tinha que ser forte.

“Tinha que ser forte”. Entoava-lhe a voz do médico. Maria voltou a pegar nas folhas, arrumando-as na pasta. Passaram 16 anos desde esse dia, até ao dia em que a mãe morreu. 16 angustiantes anos, em que todos puderam ver a mãe a definhar. Uma morte gota a gota, cujo fim, foi um respirar fundo após uma dor insuportável. Marcante na vida de todos. Vagarosamente, guardou a pasta na caixa. Pegou na outra. Vacilou. Deveria guardá-la sem a abrir, sabe disso. Mas não. Tinha mesmo que ver. Fotografias dela própria. Grávida e sorridente. Feliz. Correm-lhe memórias em turbilhão, fixando-se na última.

Fevereiro 1992 – Sexta-Feira, final de tarde. Maria entra no consultório. Grávida e feliz. Vai fazer mais uma egógrafia obstétrica. Está ansiosa. Quer saber se está tudo bem, se é menina ou menino. Tinha feito uma, 15 dias atrás. No dia a seguir, marcou esta, para outra clínica, com outra médica. Tinha que ter a certeza que estava tudo bem. Fazia-se acompanhar pelo pai do seu bebé. A certa altura, apercebeu-se que o exame estava a demorar mais do que o habitual. A médica tinha parado de conversar. O silêncio ganhava espaço. Maria percebeu que algo não estava bem. Perguntou sem rodeios. A médica respondeu da mesma forma. Alguma coisa no coração do bebé, não estava bem. “Como… não estava bem?”. A médica não se fazia explicar. “Não era só no coração, havia mais coisas, também”, adiantava. Mais coisas… que coisas? Como era possível? Aquela era a sexta ecografia, em 7 meses de gravidez. Não tinha feito uma, nem duas, nem três. Era a sexta ecografia. Como é que podiam haver coisas, que não estavam bem? Que coisas? A médica, insegura, ia falando aos sulcos e em baixo tom. Tentava em vão, transmitir alguma tranquilidade, enquanto Maria se ia calando. Ficou ali, como uma intrusa a ouvir a conversa da médica e do pai do seu bebé. A gravidez tinha começado mal, dizia ele. Com duas ameaças de aborto espontâneo. Tinha feito repouso absoluto até ao terceiro mês. Tinha investigado doenças familiares exaustivamente, nomeadamente as da sua avó Emília e da sua mãe, tendo-se escusado uma Amniócentese, por se ter feito despiste de doença grave, hereditária. “Antes tivesse sido feita” observava a médica. Não se lembrava como tinha saído dali. Não se lembrava de mais nada, senão das “coisas que não estavam bem”. Que coisas? Tinha tido tanto cuidado. Tinha investigado tudo. Do que se teria esquecido? O que teria corrido mal?

12 anos volvidos, desde esse dia. Maria guarda as fotografias e acende um cigarro. Fecha a pasta e guarda tudo na caixa de arquivo. Para quê lembrar isto agora? Não. Volta a tirar tudo, tem que ver o resto.

(continua)

Regresso ao passado I


Colocou a caixa de arquivo morto sobre o móvel. Não a abriu de imediato. O que estaria lá dentro? Já não se lembrava. Devagarinho levantou a tampa. Pastas. Retirou-as uma a uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Fixou-se nas duas últimas. “Avó Emília + Mamã”, leu na primeira. “Sara”, estava escrito na segunda. Ambas as etiquetas escritas com a sua letra. A tristeza invadiu-a, devagarinho. Antes não tivesse aberto a caixa. Inevitavelmente, teria que rever aqueles papéis. Regressar ao passado. Na primeira pasta, uma foto amarelada. Um grupo de pessoas. Adultos e crianças. Ao centro, uma senhora sentada numa cadeira de rodas. A avó Emília. À sua esquerda, a mãe, ainda mulher jovem, com o seu sobrinho ao colo. Hoje um homem de 42 anos. Tios, tias, primos… gente que já morreu. Registos de infância, de homens e mulheres, com quem convive hoje.

Novembro 1991 – Maria aguarda a sua vez para ser atendida. Está ansiosa. Impaciente. Mas reserva-se. Quando chega à sua vez, a funcionária da secretaria do hospital, já sabe ao que vai. Com simpatia, manda-a aguardar e vira costas. Volta rapidamente com uma folha de papel azul, e comenta que Maria vai ficar desiludida com o conteúdo do documento. Maria não presta atenção à voz da senhora. Não ouve, sequer. Percorre com os seus olhos ávidos, as palavras escritas no documento. Encontra. "Diagnóstico: Mielite Transversa Paraplégica”. Sente-se aliviada por não ter lido “Paramiloidose” (vulgo Doença dos Pezinhos). No mesmo instante, é assaltada pela dúvida e questiona a funcionária, se não quererá dizer a mesma coisa. Não. Respondeu a senhora. E adianta que Mielite Transversa Paraplégica, é uma consequência, um estado, originado por uma doença, quer dizer apenas que o doente é paralítico, não especificando a causa. Maria esboça a desolação no rosto. Afinal, não tinha obtido resposta. No dia anterior, tinha pedido por escrito, depois de explicar as razões, àquela funcionária, uma Certidão com Diagnóstico de Doença, relativa à sua avó Emília. Com urgência. Era necessário despistar Paramiloidose. E afinal, não há diagnóstico. A funcionária comove-se com a desilusão de Maria. Explica-lhe que naquele tempo era diferente. A medicina não estava tão avançada. Muitas vezes, não se sabia de que doenças padeciam as pessoas. Maria não diz palavra. Não levanta os olhos da folha de papel azul que tem nas mãos. Faz-se silêncio. A funcionária, pede-lhe para aguardar e sai do gabinete. Desta vez, demora-se. Quando volta, traz consigo mais papeis. Folhas compridas e estreitas, amareladas pelo tempo. Com um ar comprometido, mostra-lhas, poisando-as sobre o balcão. Maria observa as folhas. É o registo do último internamento, diz a funcionária. Adianta que vai fazer fotocópias e lhas dá. Quê as leve. Que as dê a ler ao médico. Oxalá, possam ajudar. Era o máximo que podia fazer. Maria percebe que a senhora não está autorizada a fazê-lo. Que não está a cumprir regras. Mas aceita. Concorda e agradece insistentemente. A funcionária fala-lhe de uma médica, desse tempo, ainda ao serviço. Que a procurasse, que tentasse falar com ela, ver se se lembraria de alguma coisa.

Passados 13 anos, tem novamente estas folhas nas mãos. Não lhe serviram de nada. Recorda com carinho a atitude da funcionária. E volta a percorrer com os olhos, os vários tipos de letras manuscritas nas folhas. Seguramente, escritas por várias pessoas. Algumas perfeitamente ilegíveis. O registo, dia a dia do último internamento da sua avó. Nunca a conheceu. Estas folhas, nas suas mãos, resultam no momento em que mais perto esteve dela. Desde Janeiro de 1964, a Julho do mesmo ano. “Alta a pedido da família”, lê. Para ir morrer em casa, sabia. Tinha-lhe contado a sua mãe. Morreu 2 dias depois de sair do hospital, confirma a Certidão de Óbito Os medicamentos que tomou, análises e exames que fez e seus resultados, registos de temperatura. Transfusões de sangue e sua quantidade. Um visto, em "alimentação". Sem visto, se não comeu. Três ou quatro pontos de interrogação. Os médicos andavam à nora, pensou. “Foi a ureia que a matou”, entoa a voz do tio, na sua memória. Foi a ureia que a matou. “Ureia no sangue”, lê agora. Um visto, à frente da frase. O tio tinha razão. Foi a ureia que deu o golpe final. Doze anos, num hospital, quase ininterruptamente. Os últimos da sua vida. Um dia, acordou de manhã e não andava. As pernas não obedeciam. Nunca mais obedeceram. Morreu com 42 anos. Uma mulher bela, na sua juventude. Rosto de mulher fatal, registaram as muitas fotos que lhe fizeram. Lábios rubros e brilhantes, cuidadosamente delineados e pintados. Poses de estrela, com luz posterior a esbater os cabelos negros, compridos e ondulados. Unhas longas cuidadosamente tratadas, em mãos que ora apoiavam o queixo, ora soltavam o cabelo, ora se cruzavam sobre os joelhos dobrados. Tantas fotografias conhece Maria, da sua avó. Quase todas de posse da sua mãe. Mas viu outras, que lhe mostraram orgulhosamente, o seu tio e a sua tia-avó. Linda de morrer, em todas elas. Digna de ser mostrada, de facto. Generosa, segundo consta. Amiga de ajudar o próximo. Maria, sempre teve pena de não a conhecer.

(continua)

sexta-feira, agosto 27, 2004

A minha melhor amiga


Linda!... sei que te vou por a chorar. Faço-o, porque estou certa que não vai ser um choro de tristeza. Apenas te vou comover. E nem é por isso sequer, que o faço. Estas linhas têm que ser escritas, como algo que se deve fazer, sob pena de não ter sido feito. A angústia da oportunidade que se perdeu. Tem-me dado para isto, ultimamente. Deve ser da idade. E isto da blogosfera é um óptimo fio condutor. Alguns aproveitam para expressar opiniões. Eu cá… digo tudo como os malucos. O que me vai na alma, claro. Por isso, encosta-te e acende um cigarro. Manda os putos para a tua sogra. Desliga o telefone e lê-me… se fazes o favor. É para ti que escrevo e todos, vão ser testemunhas.

Há uns tempos, escrevi No Domingo Passado (já o publiquei). A propósito do Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera, falei de ti. Sim, foste tu que mo oferecestes, antes de ir embora. Referi-me a ti, como “aquela que foi um dia, a minha melhor amiga”, como se já não fosse. Foi assim que escrevi. Confesso, que nestes últimos 10 anos, em que não te ponho a vista em cima, me surgiram algumas (poucas) dúvidas. Esse deve ter sido um dos dias. Tens que convir, que legítimas. Tu própria, as deves ter tido, também. Não será patético, referirmo-nos a uma pessoa que já não vemos há 10 anos, com quem falamos meia dúzia de vezes por ano (ao telefone, claro está) como sendo a nossa melhor amiga? Afinal, acabamos por ter outras amigas que nos estão mais perto, a quem vemos os olhos, a quem damos abraços, com quem trocamos desabafos. Tenho razão, ou não (apesar disto estar a parecer um discurso)? É, linda!... eu sei que te revês nestas palavras e sabes onde quero chegar. E nem os olhos me vês.

Melhor amiga? Que lamechice. Sim, será. Para muitos. Não para ti. Ainda por cima, agora. Longe da Pátria. Longe da família. Longe da língua. Fechada em casa, com 2 filhos. Eu sei que te vai saber bem, Ivone. E juro-te, que a mim, também.

Eu sou a Ana Quinteiro. Tenho 41 anos. A minha melhor amiga é a Ivone Leite. Conheço-a há 21 anos. E acho que vai ser sempre a minha melhor amiga. Porque nem precisa de me ver os olhos para saber o que sinto. Porque se vê doida para adormecer, depois de falar comigo ao telefone. Porque se sente pequenina, cada vez que os meus problemas lhe invadem o pensamento. Porque não me abraça há 10 anos e continua a ter vontade de o fazer.

Desculpa, linda!... tinha mesmo que ser. Tu lês-me aqui, todos os dias. Hoje escrevi eu para ti, em público.

Beijinho grande. Muita saudade.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Poucas e curtas

Chegaram. Todos. Sãos e salvos.
Não sei porquê... ... sinto-me como se tivesse crescido 2 ou 3 cm.

Um, dois, três... deu três pulinhos no tempo

(Dedicado a um fantasma chamado Riacho)

Devagarinho, veio ter comigo, cabisbaixa. Podia não ter reparado, aflita que estava nos meus afazeres. Mas reparei. E perguntei-lhe, enquanto limpava as mãos:

- Oh, filha!... Estás a fazer beicinho?

Desatou a chorar com o queixo apoiado na minha mão. Queixou-se do irmão, que lhe tinha atirado com o corpo do Snoopy à barriga (da cabeça, já não sabemos). Levantei-lhe a camisola, dei-lhe um beijinho na mancha mínima e rosada, que lhe encontrei na pele. Abracei-a. A cabeça dela, dá-me acima da barriga, abaixo do peito. Encaixa lindamente. E ficámos assim, uns minutinhos. Já é hábito. Das outras vezes, costuma dizer que ouve o meu coração. Hoje não teve tempo. Porque lhe disse que me sabia bem, a cabecinha dela… ali encostada a mim.

Lembrou-se então, que ia crescer e já com os olhos a brilhar disse:

- Quando tiver 10, dou-te por aqui. Marcou-me o pescoço com a mão.
- Quando for como a Inês, dou-te por aqui. Em bicos de pés, tocou-me na testa.
- E quando for como tu… …

A sorrir, deu um salto com o braço esticado. Imediatamente após, perguntou-me, fechando o sorriso:

- Oh, mãe! O avô usa fralda?
- Não. Respondi-lhe.
- É que a Margarida disse que todos os velhotes usam fralda.

A Margarida é uma colega dela. Mais velha, 15 dias.

- Nem todos. Respondi-lhe eu.
- Então, tu não vais usar.
- Não. Respondi-lhe convictamente.

Ia a virar costas, para se ir embora, aliviada. Eu não deixei. Contive a força nas mãos e apertei suavemente o rosto dela. Aproximei-me tanto dele, que nem via os totós que lhe fiz, hoje de manhã. E fiquei assim, a olhar aquele rosto de criança feliz. Disfarçando o olhar, roubei-lhe aquele sorriso. Tinha que o fazer. Disfarçar o olhar para que não me visse a tristeza. Roubar-lhe o sorriso para o guardar eternamente. Porque esta minha filha de 6 anos, que me consegue ler a alma, deu 3 pulinhos no tempo e chegou aos 40 anos. Afligiu-se. Não com os 40 anos dela, mas com os 34 que tenho a mais. Viu-me velhota e doente. Teve medo. E naquele momento em que retive o rosto dela entre as mãos, vi-lhe nos olhos o amor que me tem e no sorriso, a felicidade de me ter.

Finalmente, deixei-a ir. Foi-se embora aos saltaricos. Feliz e descansada. Eu retomei os meus afazeres, presa àquele sorriso. Mais tarde pensei que tenho que a deixar crescer um pouco mais e desdramatizar este uso de fraldas, dos velhotes. Vamos lá ver se não me esqueço.


Escrito a 25 de Maio de 2004

terça-feira, agosto 24, 2004

Ansiedade


É uma das minhas características. Ok!... pronto… é um dos meus defeitos. Daqueles que me fazem perder quilos, se tiver mais que meia dúzia de horas nesse estado. A sério. Perco mesmo peso, acreditem. Não é por nada de especial, é mesmo porque deixo de comer como deve ser. A comida sabe-me mal… do género: a comer o mesmo bife com outra pessoa, o meu não se desfaz entre os dentes e o do outro, parece manteiga. Pois… se calhar, fico com falta de força nos dentes, sei lá…

Bom, mas falava eu de ansiedade. Este post é um teste. É mesmo para receber comentários (percebem?). Um teste à minha sanidade mental. Sim, porque com a idade, fui controlando a impulsividade e outras formas de estar, até mesmo, de ser. Mas em relação à ansiedade, cada vez estou pior. É que só me dá para dramatizar, assim… mesmo com imagens, e cenários, e tudo. Um horror.

Nunca comemoro aniversários em dias de semana. Porquê? Porque a maior parte dos convidados vêm de Lisboa (a 132 km daqui) e depois têm que voltar, percebem? Cansados, bebidos, noite fora… até chegar às casinhas deles. Podem ter um acidente, percebem? Enfim… há mais probabilidades, digo eu. Também nunca faço a festa a um Domingo. Há mais trânsito. O pessoal todo, a regressar da santa terrinha. É sempre a um Sábado. Às vezes, já nem o aniversariante se lembra que fez anos, mas pronto. Nenhum dos convidados sai daqui, sem me prometer que telefona quando chegar. Por isso, fico mais ou menos, 2 horas à espera que me telefonem. Quando se esquecem… lá estou eu. A telefonar, não e?

O meu irmão mais novo (tem menos 7 anos que eu) faz anos dia 8 de Dezembro. É sempre feriado, como sabem. Por isso, começa a comemorar o aniversário na véspera e estende-se enfim… até aguentar. Nunca antes de ser dia. Desde que começou a sair à noite, com 17, 18 anos, ainda em casa dos meus pais, que odeio a noite de 7 para 8 de Dezembro. Já vai a caminho dos 34 anos… e raios partam!... o rapaz nunca mais assenta. Um jantarinho em casa, sei lá… uma coisinha assim… mais sossegadinha.

Mas, em relação a ele, estou melhor. Aqui há uns anos, quando a ansiedade chegava ao pique mais alto, até via carros a rebolar por ribanceiras, ouvia sirenes de ambulância e se o telefone tocasse nesse momento, ficava histérica. Ainda hoje, se o telefone me tocar depois da meia-noite, sem eu estar à espera de chamada nenhuma, demoro-me o mais que posso a atender e do lado de lá, nunca ouvem à primeira o “Sim?” que murmuro.

Também não acho piada nenhuma aos Passeios Grandes que fazem aqui na escola dos meus filhos. Todos os anos há um. Passeio grande, porque é para longe, percebem? Saem daqui de manhã cedo e só voltam à noite. Um suplício. Começo com 15 dias de antecedência a pensar no que é que vou fazer nesse dia. Sempre programas hilariantes, que é para ver se me esqueço. Mas nunca consigo escolher um. Por isso nesse dia, não faço rigorosamente nada. Ou melhor… há uma coisa que eu faço sempre. Vou não sei quantas vezes com a mão ao bolso, para tirar o papel onde assentei o número do telemóvel das professoras. Lá me consigo conter. Mas é só por vergonha, juro.

É. De facto centro-me muito nos acidentes de viação. Comecei a ganhar particular receio às lombas. Imagino, sei lá… que podem sempre vir em sentido contrário, Mercedes fora de mão. As ribanceiras e as curvas apertadas também me assustam. E os condutores que conduzem a 220 Km/h. E não. Nunca tive nenhum acidente, em que fosse eu a conduzir. Felizmente.

Pois. Os meus filhos estão fora. E andam de carro de um lado para o outro. Vou ver se durmo. É que só me sinto ansiosa, quando estou acordada. Boa noite, amigos.
Ah!... não quero cá comentários a aconselharem-me ansiolíticos, hã?!...


segunda-feira, agosto 23, 2004

Amar incondicionalmente

Ok! Confesso que tenho andado a reflectir sobre esta questão. E parece-me estar perto da minha conclusão. Pois… sou uma mulher de convicções. Preciso delas, bem arrumadinhas na minha cabeça.

Fala a Inconformada dos seus cães. Falo eu do Zé Matias. De filhos. De portos de abrigo. De mim própria. Fala o Yardbird da sua Mary. Eu cá… acho que nada acontece por acaso. E é muita coincidência junta. Reunir provas para a evidência. Qual?

Só se resolve esta questão do amor, se o tornarmos incondicional, de facto. Amar o próximo. Amarmo-nos a nós próprios. Só isto. Sem qualquer espécie de exigência. Sem qualquer espécie de condição. Já estou a ver alguns de vós a pensar… “Ah, pois!... isso é muito bonito de dizer… só que é uma gaaanda tanga. Amamos… logo, queremos”. O sentido de propriedade, sim. É o principal motivo. Aquele que lixa tudo. Se o quisermos adicionar ao amor… tá tudo lixado. Isto é… se precisamos de um certificado de propriedade, está tudo lixado. Não me consigo fazer entender, pois não?

Ora, vejamos… os filhos são nossos, por isso não temos que os querer. Já são, não é?
O Dusty é da Inconformada e a Inconformada é do Dusty. A Mary é do Yardbird. A Elisa é do José Matias. Não se questiona aqui o direito de propriedade. Apenas é assim. Sem ser necessário qualquer tipo de certificado. É e pronto… por isso não se quer que seja. É como a ideia dos portos de abrigo. São nossos. É ali que nos acolhemos… de verdade. Interessa lá, quem tem o direito de propriedade.

Isto é, se nos reportarmos para o amor pelo próximo… “Amar sem olhar a quem” todos conseguimos perceber isso. O amor do útero, também é fácil de compreender. É o outro que é difícil porque lhe pomos logo condições. É um bocado como a história da felicidade. Só hei-de ser feliz, quando tiver isto ou aquilo. Isso pressupõe que até lá não sou feliz. Fazemos da felicidade um fim, um objectivo, um destino ao qual queremos chegar, quando ela devia ser um caminho. Cometemos o mesmo erro com o amor.

É claro, que a moldura disto tudo é o respeito. Respeitar o objecto amado. Respeitarmo-nos a nós próprios. Respeitar o próprio conceito de propriedade. Isto é, no que diz respeito ao amor e às pessoas, “ser meu” é apenas “sentir meu”, não é “é meu, logo posso fazer o que quiser, exigir o que me apetece”.

É claro que há exigências que funcionam. Acordos que se estabelecem, baseados na ética, no compromisso. Alguns funcionam, como um negócio que se fecha a bom termo. Que se faz cumprir. Mas aqui, meus amigos… não estamos a falar de amor. Quanto muito, estamos a falar de respeito. O que também não é de desprezar. Para muitos é quanto basta. Cá para mim, tal como já disse no último post, é a forma melhor suportável, de viver relacionamentos. É preciso é ter essa natureza.

José Matias

Isto do amor, tem muito que se lhe diga. E pode-se dizer tudo (como os malucos). Das mais variadíssimas formas. Todas questionáveis, se nos quisermos dar a esse trabalho. Ou aceitáveis, se não estivermos para aí virados. Refiro-me ao Amor, propriamente dito. Aquele que realmente existe, ou devia existir. Não exactamente ao conceito de propriedade ou compromisso, que muitos confundem com amor. A mim parece-me mais uma questão de ética. E refiro-me também ao amor sem laços de sangue. Porque o que temos aos nossos filhos e eles a nós, (irmãos, enfim)…é regra geral, incondicional, logo inquestionável. A esse, passo à frente. Hoje.

Cada vez que me ponho a pensar nisto do amor, que nos faz tanto bem e tanto mal, lembro-me sempre dos Estados de Kubbler Ross: Raiva. Negação. Negociação. Depressão. Aceitação. Ok! Eu sei que foi aplicável a doentes terminais. O que à partida, não terá nada a ver com amor (ou terá?). Mas parecem-me nitidamente, as várias etapas de um amor que se vive. Em maior ou menor espaço de tempo. Com ou sem final feliz. Aqui, a única diferença é o estado de depressão. No final infeliz, depressão, tem o sentido de crise, conflito. No final feliz, tem o sentido de concavo, ninho. Nos outros estados, o sentido é igual, para os dois finais.

Raiva – Estou apaixonada. Porra!... Ok! É bom, quando vivemos momentos de envolvente magia. Cumplicidade. Olhamos nos olhos e sabemos… Ouvimos a voz e dulcificamos. Mimos. É bom, sim. Mas não é bom quando somos privados da companhia. Quando aparecem as dúvidas e nos fazem fragilizar as certezas. Por isso, a raiva. Muitas vezes, não queremos estar apaixonados.

Negação – É para este estado que passamos, a seguir. E lá permanecemos, durante algum tempo. Não interessa nada se os momentos de magia são em maior quantidade que os de incertezas. Pois… eu sei que devia interessar, mas a verdade, é que não interessa. Passamos sempre à fase da negociação. Ok!... pronto!... se os momentos de incertezas são em maior número, passamos mais depressa ao estado da negociação, que é para ver se acabamos com o suplício depressa. Se não, andamos ali mais tempo a bater com a cabeça nas paredes.

Negociação – É a fase que eu gosto mais. A sério. Tornamo-nos muito imaginativos. Se formos espertos e percebermos em que fase é que estamos, saímos a ganhar. Caso contrário, nem nos apercebemos que passámos por esta fase. É nesta fase que se define qual dos dois é o sofredor. Qual dos dois é que dá menos (ou não dá nada). É neste estado que se definem os papeis. Ok! Por mim, só fazes isto… o resto, continuo eu a fazer. Melhor ainda… não faças nada por mim, ama-me apenas. Protege-me só quando eu pedir. Dá-me espaço. Eu sou eu. Tu és tu. Não confundamos as coisas. Mas, porra!... não ensurdeças. Este é o melhor acordo. Garanto-vos eu.

Depressão – Já falei dela. Pode ser a melhor. Pode ser a pior. Se for a melhor, passamos ao estado da aceitação, sem dar por ela. Se for a pior… mais cedo ou mais tarde percebemos o que é que temos que aceitar.

Aceitação – Ou sim… ou sopas. Ou vivemos felizes até que a morte nos separe. Ou vivemos felizes até que a morte nos separe, mas cada um para seu lado. É tão simples como isso. E é preciso aceitar. Porque viver infeliz até que a morte nos separe, é que não dá.

Só há aqui um pormenor que me escapa à compreensão. Que faz com que esta ideia, não passe de uma teoria, porque não a consigo comprovar. Porra!... detesto que isto me aconteça. Abana-me a pose toda. Refiro-me ao José Matias. Sim, o do Eça de Queirós. O amor platónico. Esse não se encaixa aqui. Assim, à primeira… parece quase perfeito, não fosse a ausência do contacto pele com pele, indispensável, digo eu. Sempre pensei no José Matias como um gaaanda tanso. Um homem livre e descomprometido… pff!... vá-se lá perceber…Mas, não sei… começo a ter as minhas dúvidas. Na volta o homem até era esperto, se me esquecer do final de vida que teve. Amou a Elisa até ao fim, sem passar por nenhuma fase Kubbler Ross. Isto é, entrou directamente na aceitação. Mas coitado… se não penou com os estados anteriores, este arruinou-lhe a vida. Esperto? Talvez. Se a intenção dele era viver para amar.

Não sei. Agora, assim de repente… acho que espertos são os que confundem o amor com o conceito de propriedade e compromisso. Será que confundem de propósito? Pois… claro… só pode ser.

sábado, agosto 21, 2004

Hoje não me apetece escrever na primeira pessoa


Voltou para dentro. Fechou a porta atrás de si. Lá fora a poucos metros de distância, afastava-se o carro onde seguiam os seus filhos pequenos. Iam passar o fim-de-semana com o pai. O primeiro. Estavam tristes, sem entusiasmo. Afinal era a primeira vez que estariam separados mais do que 48 horas. Despediram-se até poder. Até deixarem de se ver. Até a estrada acabar.

Tentava conter as lágrimas. Ser razoável. Hesitante, vacilava entre a razoabilidade e a entrega total à angústia da separação. Acabou por desmoronar. Afinal, ninguém a vi-a. Caramba!... podia chorar à vontade. Soltaram-se as lágrimas, enquanto ligava o hi-fi. Sonhos, de Caetano Veloso. Era o cd que estava na gaveta do hi-fi. Talvez a música a conseguisse distrair. Ou talvez fosse o elemento que faltava para completar o cenário. Entrega total à doce tristeza.

Não. Mudou de ideias. Esta música não. Trocou o cd. Nem chegou a ouvir o segundo. Mudou de ideias novamente. Desligou o hi-fi e ligou o pc. Porto seguro. Atracou. Chorou. Escreveu. Desta vez, foi rápido. Secaram as lágrimas num instante.

Agora sim. Eat the rich, Aerosmith. 30 db. Fechou as janelas. Decide que vai sair. Tem que se despachar até à 8ª música, Cryin. Esta já não quer ouvir. Provoca-lhe sempre a sensação de saudade de algo que nunca teve. Estranhíssima. Ora doce, ora desconfortável. Mais sensações de complexa percepção, não.

Banho. É isso. Um duche alivia-a sempre. O toque da água morna a correr alegremente pela sua pele. O perfume do gel de banho. Do shampoo. O barulho da água a cair no chão. Não pensa em nada. Despacha-se apenas.

Trata de si. Hoje é dela que vai tratar. Está disponível. Olha-se ao espelho. Agrada-lhe aquele contraste da pele morena com o imenso branco da roupa interior. Hoje é branco, sim. T-shirt branca. Calças de ganga. Chinelos a desnudar os pés. Põe o melhor perfume. Ajeita o cabelo. Hoje fica solto.

Telemóvel. Carteira. Tabaco. Tudo para dentro da mochila. Pega nela para sair. Está leve. Falta-lhe os boletins de saúde dos miúdos, as duas garrafinhas de água (têm sempre sede na rua) a chucha e a fralda da filha mais nova. Parece-lhe agora, que a mochila tem o peso ideal. Dirige-se à porta. Ah!... a música. Tem que desligar o hi-fi. Volta atrás no preciso momento em que se faz ouvir Cryin. Mas não desliga. Ouve-a até ao fim.

Numa paz de espírito imensa, desliga o som e sai de casa. Uma festinha ao cão antes de entrar no carro. Marcha-atrás. Desce pelo mesmo sítio que os filhos desceram à pouco. Está segura. Repara nas mãos pequenas e morenas sobre o volante do carro. Nos dois anéis de prata que usa no anelar esquerdo. Agrada-lhe. Gosta mesmo de se ver com aquele tom de pele. Vai segura. No pensamento, os seus filhos, o porto de abrigo. Primeira paragem. Multibanco. Carregar o telemóvel. Minimiza a distância até aos filhos. Depois… logo se vê. Mas o dia vai correr bem. Tem a certeza disso.



Pois… de facto, hoje não me apeteceu escrever na primeira pessoa.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Agradecimento público I


Uma das minhas grandes preocupações nesta coisa das palavras escritas, é evitar as lamechices. Confesso que tenho tendência para me enrolar nelas. E não gosto. Esforço-me bastante para contrariar essa propensão. Umas vezes melhor sucedida que outras.

Seja como for, o mote deste post, é por si mesmo, lamechas (compreenderão mais à frente porquê… os que compreenderem alguma coisa). De maneira que depois de andar para aqui às voltas para tentar definir a forma como o deveria escrever, decidi que me deveria concentrar no seu próprio conteúdo. Isto é, da lamechice não me safo, vamos portanto ver, se me consigo fazer entender.

Ok. É um agradecimento, sim. Não me sinto obrigada a fazê-lo, não. Se sentisse, se calhar não o fazia, já que também tenho tendência para ser um bocadinho torcida. Mas quero fazê-lo. Se o motivo da gratidão pode ser imperceptível, melhor dizendo, incompreensível, a situação que o origina pode ser datada e descrita.

Dia 3 deste mês… preparava-me para ir de férias, ou deveria estar a preparar-me. No entanto, acordei tal como me tinha deitado na noite anterior… deixem-me usar a palavra, desfeita. Vim espreitar o meu blog, não sei se antes, se depois dos vossos. Tinha um comentário que ainda não tinha lido, no penúltimo ou antepenúltimo post. De uma mulher. A primeira mulher a manifestar-se com um comentário. Muito simples. Muito discreto. Fui espreitar o blog dela. Perdi a noção do tempo. À medida que o ia lendo, fui passando para outra dimensão. Mais leve. Mais desprovida de efeitos, isto é, apenas lia. No fim, definiu-se então, um resultado. Já não me sentia singular. Ou seja, afinal há pessoas que partilham comigo ideias, sentimentos, convicções, que antes da leitura, eu tinha interiorizado serem exclusivas. Dolorosamente, minhas. Pessoas que não conheço de parte nenhuma. Com quem nunca troquei uma palavra. A quem nunca influenciei. Uma mulher. Cujo carácter, reconheci sem esforço. É exactamente isto, que tenho a agradecer. A sensação de não ser única. Naquela altura, confortou-me imensamente. O meu escudo de protecção desactivou. Levantei-me e fiz as malas. Fui de férias com os meus filhos.

E pronto, está feito. Confesso que custou um bocadinho. Acabo de ter a impressão que este é o post que mais jus faz, ao título do blog.

E agora… outra coisa… volta e meia, lá aparece um comentário no meu blog. Não sei se vai aparecer algum por baixo deste post, mas se houver algum, fica já aqui manifestado que não gostaria de ler nele, 3 palavras seguidas: não, era e preciso. E agora, para os engraçadinhos que gostam de me desafiar (sim, mais um recado)… nada de comentários com uso das mesmas palavras, intercaladas com outras, mas sublinhadas, do género: Acabei por não perceber nada do que para aí escreveste. Afinal?... era para agradecer, ou não? Acho que preciso de voltar a ler o post mais algumas vezes, a ver se compreendo. Mas não agora. Talvez numa altura em que já me tenha esquecido : ) Também não vale deixar comentários assinados com N.E.P. (não era preciso) ou N.E.N. (não era necessário)… mais?... Ok!... depois destes recados, já sei que há-de haver um, a furar o esquema. Estou cá para ver qual é o habilidoso, eheh.

Ah!... já me esquecia… “Agradecimento público I”, porque é o primeiro. Há mais. Mas as "vítimas", são outras pessoas. Oh pá!... está-me a dar para isto. E agora?... Alguma razão haverá. Mas, pronto… assim um agradecimento de quando em quando, para não enjoar.

quinta-feira, agosto 19, 2004

Crescer demais


Razão, é a verdade
Não é discurso.
Amor, não se anuncia
Cultiva-se. Faz-se sentir.
Respeito, não é autoridade
É conquista.
Tolerância é generosidade
E arrogância, a falta dela.
Por isso,
"O melhor do mundo são as crianças".
É pena… todos nós crescermos tanto.


Este texto foi escrito em Julho de 2002.
Escrevi-o para o oferecer. Se é que um texto, concretamente um texto deste teor, pode ser considerado uma oferta… principalmente para quem o recebe. Mas, na verdade, fiz dele uma oferta (e deliciei-me com isso) entregando-o em mãos, à primeira Educadora da minha filha mais nova, exactamente no final do ano lectivo, ao invés do comum “tive muito prazer em conhecê-la” que era suposto ter verbalizado. Não. O raio da mulher, não o leu à minha frente. Anteviu que dali não podia vir boa coisa. Sim, porque a senhora era desprezível, mas de estúpida não tinha nada. E lá deve ter feito o tempo correr para trás, naquela fracção de segundos, lembrando-se dos dissabores que lhe causei ao longo de todo o ano. Adivinhou por isso, que era mais um.

Na verdade, também não tinha grandes esperanças que a senhora lesse o texto à minha frente e imediatamente após a leitura, desse com a cabeça nas paredes. Era bom demais. A bem dizer, não tinha esperança de coisa nenhuma, exceptuando a de não voltar a saber daquela Educadora, colocada nos anos seguintes, no Jardim da minha filha. Talvez a pudesse desencorajar a concorrer àquela escola. Mas nem foi por isso que lhe ofereci o texto. Fi-lo por mim. Era suposto, ser o golpe final. Enfim, um registo para a posteridade que não a fizesse duvidar do desagrado que me causou enquanto profissional de educação. E não… nunca considerei a hipótese de ela não ter lido o texto. Gosto até de a adivinhar a precipitar-se para o envelope, mal eu virei as costas.

Ok. Vocês são todos espertos e já perceberam que este texto, ou a ideia que nele é manifestada, não tem só a ver com o universo escolar. Perceberam isso pela quantidade de palavras que usei no seu comentário. Perceberam isso porque não entrei em pormenores. Afinal, que raio fez a mulher? Perguntarão alguns. A mulher… fez muita coisa mal feita, mas já lá vai mais de um ano e se a visse agora, acho que nem rosnava.

A verdade é que este texto, que até tenho memorizado integralmente, tem surgido à superfície vezes sem conta, como um lembrete daqueles bem persistentes que teimam em não nos fazer esquecer de algo muito importante. Algumas vezes como uma espécie de máxima proferida por um qualquer sábio, ou como uma teoria que entretanto foi estudada e experimentada vezes sem conta, tornando-se num dado provado e adquirido.
Outras vezes… como a imagem que se vê ao espelho.

terça-feira, agosto 03, 2004

Foi por causa das osgas


Pois… a esta hora, já eu devia estar a caminho da praia para passar as primeiras férias da minha vida, sozinha com as minhas 3 crianças. Mas ainda aqui estou e… ainda nem as malas fiz.

Então?... Já não vou?

Vou sim. Estou só à espera que me recompor. Ontem desmontei-me toda. A desmontar é rápido. Demora mais tempo a voltar a por tudo no sítio, outra vez. Mas já está quase. E lá para as 3 horas da tarde (com o respectivo atraso) conto estar a caminho, com os meus únicos bens, no banco de trás do carro. E ao final da tarde vamos molhar os pés na praia e fazer o reconhecimento ao local onde iremos passar os próximos dias.

Mas tenho que dizer aqui uma coisa… É curiosa, a forma como às vezes, encontramos força para por o esqueleto de pé (expressão roubada ao Manuel do H Gasolim). Hoje então, foi mesmo curiosa. Vim visitar o meu blog e encontrei um comentário no post Osgas Outra Vez. De uma mulher. A primeira que me deixou um comentário. Nada de especial, vos garanto. Já o blog dela… meus amigos… perdi-me com ele. E há mesmo 2 ou 3, que parecem ter sido sugeridos por um qualquer professor, ou seja, “têm aqui um tema… desenvolvam-no”. Formas diferentes de escrever a mesma coisa.

A identificação com as palavras dela, levantou-me o esqueleto. Estou a escrever outra vez e… já me apetece ir de férias. Tenho que lhe agradecer, quando voltar.

Fiquem bem, amigos.