terça-feira, fevereiro 28, 2006

Por falta de lenha

Não é que não tenha mais nada para ler.
Ou escrever (disparates como este).
Mas acabou-se a lenha.
E agora... já não vou ao carro, outra vez.
Mas é só porque está um frio do caraças e a preguiça constrange-me os movimentos.
Chegou portanto, o dia ao fim... por falta de lenha.

Vou? Não vou?

Descobri que não moro numa aldeia só por causa dos meus filhos.
Descobri também que sou muito preguiçosa.



Saí do trabalho ao final da tarde. E antes de regressar à minha casa que sabia vazia e silenciosa, resolvi parar no celeiro da lenha. Carreguei a quantidade habitual. Fiz a conversa da praxe e segui o meu caminho, durante o qual tomei algumas decisões.

Decidi: Chego a casa e descarrego a lenha. Telefono à minha amiga a dizer que afinal, não me apetece ir às compras. Tomo um duche bem quente. Mudo de roupa. Acendo a lareira. Faço jantar só para mim e bebo o João Pires que sobrou do jantar de ontem. É isso que vou fazer.

Parei o carro à porta da minha casa. Hoje, vazia e silenciosa. Subi as escadas e tornei a descer com o cesto da lenha. Voltei a subir a custo. Deixei 3/4 da lenha dentro do carro. Tomei o meu duche de água bem quente. Mudei de roupa. Acendi a lareira. Não fiz jantar para mim, nem bebi o João Pires que sobrou do jantar de ontem. Mas foi só, porque me entretive tempo demais, ao telefone com a minha amiga.

Enganei o estômago bem enganado, com uma sopa de feijão verde, bem quente e perfumada. Puxei o cadeirão para a frente da lareira e ouvi as notícias como quem finalmente se pode presentear com algo que há muito tempo, deseja. Depois, abandonei-me às chamas que hoje, dançam só para mim. E deixei-me estar, com os olhos ora abertos ora fechados, sobre elas. Não sei quanto tempo.

Quando me fartei, vim ler. Li. Ofereci mais lenha à lareira e li. E continuei a ler e a oferecer mais lenha à lareira. E depois… já não tinha mais lenha para a lareira. Mas ainda tinha coisas para ler.



Vou? Não vou? Ainda cheguei a vacilar.

Vou. Desci as escadas e fui buscar mais lenha. Ao carro. Pois.

Concluí: se eu morasse em Lisboa, era preguiçosa à mesma. Por certo, teria preguiça de descarregar a lenha toda do carro. Como hoje tive. Mas mais seguro ainda, é que se eu morasse em Lisboa, junto da minha família, eu não tinha lareira. Tão-pouco estacionaria o carro mesmo à porta de casa. E muito menos… iria ao carro descarregar fosse o que fosse, há 1 da manhã.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

"Abraços que nunca passam"

(registos)

Às vezes, tudo não chega para me levantar a moral.
Outras vezes, quase nada é o suficiente.

Até fiquei com pena das minhas amigas e do esforço que fizeram.
Ontem... durante o dia.

domingo, fevereiro 19, 2006

Evasão

(registos)

Dita-nos o bom-senso, o orgulho, o sentido da razoabilidade, um limite… a partir do qual, não devemos ousar. Se ousamos, temos que ter estrutura para aguentar as consequências. A pior das consequências a suportar, é exactamente o sentido da evasão, quando não nos queremos evadir do nosso próprio limite.

Eu sei que o ser humano tem uma capacidade incrível de adaptação a todos os meios e dificuldades. Uma resistência, sempre superior há que se julga ter. Mas até ela terá limite possível de transpor. Acredito pouco no retorno ao lugar imediatamente anterior à evasão. E isso, assusta-me terrivelmente. Não quero de todo, evadir-me.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Não tenho afinal, motivos de preocupação

Hoje é dia de teatro. Em Lisboa.

É claro, que não me levantei a horas. E que ele perdeu a camioneta. E pois, tive que o ir levar à escola.

Grande correria logo pela manhã. Conseguimos não nos esquecer de nada. E até chegámos a horas.

Feitas as devidas advertências durante a viagem, assim chegados, houve apenas tempo para o beijinho… vai e diverte-te.

E ele foi.

Estavam os dois autocarros à porta da escola e ele correu para o segundo autocarro, onde se acotovelavam os colegas da turma. Deixei de o ver.

Enquanto esperava poder fazer manobra para voltar para trás, vejo-os precipitarem-se para o primeiro autocarro. Alguém terá mudado de ideias e afinal, era naquele que deviam ir.

No meio deles todos, ele era arrastado por um braço. Por ela.

Pareceu-me bem. A miúda é decidida.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Cresceu e eu não dei por isso

(dia dos namorados)


Cheguei a casa ao final da tarde, com a pergunta na ponta da língua:

- E, então? Correu bem?

Ou talvez pudesse perguntar:

- E, então? Ela reagiu bem?

Mas, ele não estava sozinho. Com ele, estavam 2 amigos. Todos enfiados no quarto a jogar X-Box.

Fumei 2 ou 3 cigarros e os putos, não havia meio de se irem embora. Fiz conversa com quem ia e com quem chegava, por entre espreitadelas para o relógio. Finalmente chegou o momento. Já só estávamos nós os 4.

Chamei-o à parte para garantir que o assunto ficava só entre nós e disparei as duas perguntas seguidas.

- Fogo, mãe!... se eu soubesse que ia ser assim, não te tinha contado nada.

……………………………

Porra!... o miúdo cresceu e eu não dei por isso.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Nada de novo, portanto


Mais de 10 minutos de viagem é quanto basta para me correr o pensamento e o olhar sob influências tais, que quase me retiram a identidade. Afinal, resistentes.

Hoje fui a Santarém. Ditou-me o calendário que consultei e tinha em minha posse, que amanhã era o último dia para fazer uma inscrição. Só quando lá cheguei fui alertada, que o calendário que tinha retirado da net há um mês atrás, era o do ano passado. Do mal, o menos… as inscrições ainda nem começaram.

Desconcentração e influências resistentes. Nada de novo, portanto.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Eu sei que me ficou mal

Dei-me conta dele, de tal modo, colado às traseiras do meu carro, que vacilei antes de encostar o pé ao travão, quando a rotunda se aproximou. Não me tocou.

À primeira oportunidade, cheguei-me à direita, na estrada, rezando a todos os santinhos para que me ultrapassasse. Não me ultrapassou.

Quem sabe, atraído pela minha guedelha, hoje particularmente mais desalinhada do que é habitual, manteve-se colado às traseiras do meu carro, de tal forma me enervando, que baixei o volume do rádio, para melhor me concentrar nas manobras do meu companheiro de viagem (assim sou obrigada a chamar-lhe, tal era a nossa proximidade).

Espetei os olhos no retrovisor e deparei-me com um verdadeiro exercício à arte de bem saber imaginar. Todas as feições naquele rosto tinham que se descobrir. Desbravar. Calculei sem grande convicção, 2 estreitos dedos de testa, entre as sobrancelhas e uma imensidão de grossos caracóis grisalhos. Nunca vi bigode tão farto e crespo. De tal maneira, farto e crespo, que se me revoltou o estômago, quando breve, breve, atravessou o meu pensamento, a imagem daquela boca a mastigar fosse o que fosse.

Não me voltei a atrever a olhar para o retrovisor.

Ainda me passou pela cabeça não parar o carro no semáforo, escudando-me na permissividade da luz amarela, entretanto substituída pela vermelha, mas pareceu-me mal… e parei mesmo.

A sério, que também me pareceu mal, ver pelo canto do olho, o vulto vermelho do carro do meu companheiro de viagem a parar ao lado esquerdo do meu. À mesma, próximo demais, que se quisesse abrir a minha porta, não conseguia. Acho que foi esse o problema maior. Sentir-me presa. Pressionada. Incomodada. Lesada na minha liberdade. Na minha vontade. Neste caso, obrigada a permanecer dentro de um carro… donde não pretendia sair.

Atrevi-me a olhar para ele. Olhos nos olhos. O homem confundiu-se com certeza. Descaradamente, passou sem qualquer delicadeza, o polegar, no sítio onde supostamente seriam os lábios. Duma ponta à outra… vagarosamente. Tal e qual faz o rapaz do anúncio do Martini. Bem… não foi mesmo, tal e qual… faltou-lhe a delicadeza, o rosto bonito, a convicção… até os óculos de sol. Em contrapartida, sobrou-lhe unha… no dedo mindinho (a sério, que pensava que já não havia quem usasse essa unha mais comprida que as outras). Tentou ainda e simultaneamente, um olhar sedutor. Tentou.

Se não acho piada alguma a esse gesto no anúncio, que o nem consigo entender, naquela pessoa, naquele homem tão abundantemente provido de pêlos e cabelos, foi simplesmente agoniante, aterrador (temo aliás, os pesadelos que vou sonhar esta noite).

Mais forte que eu, fiz uma coisa que nunca me lembro de fazer, senão com os meus filhos claro, numa linguagem muito própria, muito nossa. Um gesto que significa que não gostamos mesmo nadinha, de uma qualquer coisa. Foi o que me ocorreu de imediato. Responder-lhe igualmente, em linguagem gestual. Com o ar mais agoniado que consegui fazer (garanto que não me esforcei muito) simulei a introdução dos dedos indicador e médio na boca, a provocar o vómito.

Eu sei que me ficou mal.

Curiosamente, muito curiosamente… reagiu da melhor maneira possível. Soltou uma gargalhada que consegui ouvir dentro do meu carro. E fez-me sinal com o polegar, que tinha considerado porreira, a minha reacção. Imediatamente, seguiu caminho sorridente… ainda com o sinal vermelho.

Eu esperei a minha vez. Depois, virei na primeira rua à direita, estacionei o carro e saí para beber um café. Decidi que me sentia mais confortável, supondo que a distância entre o meu carro e o dele, era a maior possível.

domingo, fevereiro 05, 2006

Nova Era

A era pode ser nova, mas as consequências são as mesmas: Costas rijas (que a cadeira de madeira, não dá para mais).

Passei o fim-de-semana à frente do pc a ler, a escrever, a descobrir, em suma, a arrumar-me. Uma espécie de nova era, já que não é exactamente isto, que costumo fazer com o monitor à frente dos olhos.

No pensamento (naquele que me corre sem indução do entusiasmo que me vai causando sobretudo, a descoberta) tilinta insistentemente o alerta que me foi dado em tempos, dos riscos nefastos e enrededoramente* viciantes da blogosfera (foi fundamentalmente nela, que vagueei todo o fim-de-semana) e a quantidade de coisas que tinha em mente fazer e não fiz. Nada de novo, portanto.

O resultado visível, do fim-de-semana está aqui ao lado, no sidebar e nos novos links que aos outros se juntaram. Quase tudo arrumadinho. Ainda não foi desta que linkei o meu “melhor de todos”. O primeiro. O pioneiro. O responsável por este.

Enredaderamente viciante, grandemente responsável pela minha inactividade física, é um bocado meu, ao qual não dava especial atenção nos últimos tempos. Foi bom voltar. E sentir que resisti… no primeiro fim-de-semana, de uma nova era.


* eu sei que a palavra não existe, mas foi mesmo assim que me avisaram.

sábado, fevereiro 04, 2006

Gaivota

(apontamentos)

Depois de um profundo momento de reflexão, concluí que se pudesse escolher ser outro animal, escolhia ser Gaivota.

Voa.
Encontra comida com facilidade.
Não lhe conheço grandes predadores.

Pode por isso ser estúpida, que não perde grande coisa com isso.

António

Tinha feito uma pausa no trabalho. A ida habitual à pastelaria, mais para fumar um cigarro, do que para beber o café. Não reparou quem estava nas mesas. Ao balcão não estava ninguém, senão do lado de dentro, a empregada habitual.

- Olá, Paula. Dá-me um café, por favor.

Paula, sabia que o intervalo era sempre pequeno. Respondeu ao cumprimento e depressa a atendeu. Voltou com o café que poisou sobre o balcão, à sua frente.

- Não te esqueças de jogar no Euromilhões – Disse.

- É Jackpot, não é? – Respondeu Laura, sem desviar o olhar do ecrã da televisão, onde já tinha cravado os olhos.

- A ver se não me esqueço. Obrigada - Acrescentou.

Não é que não lhe apetecesse conversar. Apenas estava alheia, sem grande poder de concentração, de fixação em coisa alguma, em assunto concreto. Até mesmo os olhos direccionados à televisão, não lhe faziam correr o pensamento, despertar o interesse.

Paula, percebendo o seu alheamento, encostou-se à bancada, do lado de dentro do balcão e esperou pelo próximo cliente.

A porta abriu e fechou. Ouviu-se uma saudação em dueto de vozes masculinas, à qual Paula respondeu, prontamente. Laura correspondeu também, automaticamente, sem que a curiosidade fosse suficiente para que o seu olhar mudasse de direcção.

Ouvia as vozes de Paula e dos dois homens. Ouviu mais uma vez, o barulho da máquina do café. O som baixo da televisão. Os seus olhos, baixavam e levantavam, entre o ecrã e o cinzeiro, continuando alheia ao que se passava em seu redor.

Depois, já não ouvia vozes. Apagou o cigarro e bebeu o café em 3 ou 4 golos. Poisou a chávena e olhou finalmente para Paula. Ia despedir-se. Os seus olhares colidiram. Paula apresentava um sorriso cúmplice de alguma coisa, mas Laura não teve tempo para concluir nada. Nesse preciso momento, sentiu um sopro no cabelo, junto à orelha direita que lhe desviou a atenção do sorriso de Paula.

Voltou-se repentinamente e numa fracção de segundos, aquele espaço vazio, aquele olhar vago, aquele alheamento, deram lugar a uma catadupa de emoções. Surpresa, alegria e comoção, chegaram-lhe o brilho aos olhos.

- O que é que tu estás aqui a fazer? – Perguntou ao homem que via à sua frente.

- E um abraço? – Respondeu-lhe ele.



O verão tinha acabado. As poucas idas à praia tinham sido feitas em conjunto. Sete ou oito vezes, já que António não disponha de muito tempo livre. Nunca foram cedo e ficavam sempre até depois do pôr-do-sol. Naquele dia, foi diferente. Já fazia frio e António não levava o seu filho pequeno. Tinham combinado encontro no sítio habitual. Laura chegou primeiro e sentou-se num banco, aguardando. O Sol ainda estava quente. Olhou em redor e como nada lhe suscitou interesse, tirou da mochila o livro que andava a ler. Dez ou quinze minutos depois, sentiu um sopro no cabelo, junto à orelha direita. Fechou o livro e sorriu.

- Hoje cheguei primeiro – Disse.

António deu a volta ao banco, sentou-se ao seu lado e beijou-a no rosto. Com ar cansado, recostou-se no banco.

- Quantas horas dormiste? – Perguntou Laura.

- Sei lá. Poucas – Respondeu António.

- Porque marcaste para tão cedo, então? – Tornou Laura.

- Ah!... temos que ir à praia. E quero apanhá-la ainda com sol.

- Hum!... praia. – Sorriu, satisfeita.

- Embora lá, então – Acrescentou.

Era evidente a diferença energética entre eles. Laura levantou-se primeiro e puxou-o por uma mão. António, pastelão, deixou-se arrastar.

No carro, pouco comunicaram por palavras. António, terno como sempre, vagueava a mão direita entre o manípulo das mudanças e a mão de Laura. Apertava-lhe a mão com força, antes de a retirar. Sempre. Como que a pedir licença ou a dar aviso, antes de as separar. Uma linguagem de afectos absorvente, que lhes retirava a vontade de conversar.

Já na praia, fizeram o habitual. Excepção à parte no que diz respeito às construções na areia, brincadeira imposta pela companhia de crianças pequenas. Costumavam deitar-se na areia da praia e olhar o céu. Adivinhavam formas de animais ou objectos nas nuvens brancas. Ou contavam as estrelas a partir da primeira que se começava a ver.

Ao fim da tarde fazia frio. Não tinham levado toalhas nem agasalhos suficientes. O Sol já mal aquecia e a areia estava demasiado húmida. Laura começou a queixar-se do frio. Levantou-se, permanecendo sentada. Abraçou os próprios joelhos, encolhida com o frio. António sentou-se também. Olhou para Laura e comentou a cor dos seus lábios: estavam arroxeados.

- Perdeste o bronzeado – Dizia, brincando.

- Olha para mim – Pediu.

Laura fez-lhe a vontade. Esforçou um sorriso. O olhar denunciava o quase desespero de tanto frio, sentia.

- Os teus olhos, ainda estão verdes… e tu não estás triste – Continuou.

Os olhos de Laura, esverdeavam quando se emocionava, chorava ou quando a luz do Sol era intensa.

- Não. Não estou triste e ainda há luz, sim, mas não a suficiente para me aquecer – respondeu Laura, sorrindo.

António, chegou-se a ela, abraçando-a demoradamente.

- Estás a tremer. Precisas de andar um bocado. De beber qualquer coisa quente.

- Uma coisa quente, sim. Preciso de beber uma coisa quente – Respondeu Laura, fixando-se a essa ideia.

António pegou nas sapatilhas dele e deu um nó comum aos atacadores. Atirou-as para cima dos ombros. Agarrou nos sapatos de Laura e levantou-se.

- Anda – disse, puxando-a por uma mão.

Conduziu-a em direcção ao mar. Laura, contrariada, tentava resistir. Na ideia, já só trazia uma bebida quente. Molhar os pés, era coisa que não lhe apetecia, de todo.

António repetiu-se, dizendo que não saia dali sem molhar os pés. Se teria que a levar ao colo... que se ela andasse, aquecia... que era só, até à direcção do bar. Uma imensidão de fracos argumentos a que Laura cedeu, não pela força deles, mas pela insistência de António.

Fizeram a praia, abraçados, chapinhando os pés na água gelada, para trás e para a frente, ignorando a localização do bar que ficava sensivelmente a meio, depois do paredão. António estava muito animado. Soltava disparates constantemente, aos quais Laura reagia, conforme podia. Mantinha, apesar do frio, a boa disposição, também. Mas, na ideia…estava fixa uma bebida quente. E quando ele movia o corpo, no sentido de se afastar ligeiramente, Laura determinada, prendia-o, assustada com o frio que sentiria se lhe fugisse o calor do corpo dele, se deixasse de lhe sentir o bafo quente, por entre os cabelos, junto ao pescoço, à orelha.

Quando finalmente António se cansou, direccionaram-se ao bar. Havia a atravessar toda a extensão de areia, o paredão, os degraus… Laura queixava-se que não aguentava. Tremiam-lhe as pernas de tal forma, que o seu andar era induzido pelo apoio de António. Tremia-lhe a voz, também. Deixou de falar, sob pena de morder a própria língua.

António percebeu que ela estava realmente, aflita. Repetia que já faltava pouco. Que breve, breve, estava a beber um leite quente, ou qualquer outra coisa. Leite com chocolate. Café com leite. Um chá. Tudo muito quentinho.

Foi o nome destas bebidas quentes e de todas as que António se lembrou de dizer, que aproximaram os degraus às pernas de Laura. Sentou-a no terceiro ou quarto degrau. Atirou com os sapatos para o lado. Despiu o casaco e cobriu-lhe as costas. Disse que voltava já.

E voltou. Com um copo de leite quente tapado com um prato pequeno e um casaco azul qualquer, que ajeitou por cima do dele, sobre as costas de Laura.

Manteve-se de cócoras uns degraus abaixo, à frente dela até o leite atingir o meio do copo. Pedia-lhe desculpa, aflito. Não lhe tirava os olhos de cima. Não largava as mãos dela e do copo.

A esse nível de leite, no copo, Laura conseguiu finalmente, falar. Sossegou-o, que já estava bem. António levantou-se. Sentou-se um degrau acima do dela, com uma perna para cada lado do seu corpo, acomodando-se às suas costas. Não disse nada, durante um bocado.

Foi Laura que quebrou o silêncio das vozes, insistindo que se sentia bem. Ouvia-se o mar. Potente. Ficaram ali os dois, retidos no pôr-do-sol, sentados nos degraus, com os corpos em concha.

A propósito de qualquer coisa que se disse, António lembrou-se de uma música e começou a cantá-la. Caetano Veloso. Cantou-a de princípio ao fim, surpreendendo Laura, que lhe conhecia a voz de rádio, falada. Cantada, não. Depois dessa, foi mais uma imensidão delas.

Ficaram assim, até já ser de noite. Entre canções sussurradas ao ouvido, risadas e disparates. Manteram os corpos quentes no abraço, reforçado pelo casaco azul emprestado. Protegidos pelos degraus. Nem as calças molhadas até ao joelho, os conseguiram fazer arrefecer.

...

Abraçou-o em silêncio, constrangida. Num abraço apertado e breve. Sob o olhar de Paula e do homem que acompanhava António.

- Estás na mesma, tu – Disse-lhe António, tocando-lhe nos cabelos.

- Até o cabelo – Acrescentou.

- Ah!... não estou, não – Respondeu-lhe, Laura – Na mesma, não estou.

- Mas tu , também não estás muito diferente – Acrescentou.

- Tenho pouco tempo, mas conta-me… continuas na seguradora? Na rádio? O André? – Quis saber, Laura.

- Na seguradora, não. Na rádio, sim… enquanto me quiserem. E o André já saiu de casa – Respondeu.

- E tu? Estás onde? Foi para aqui que vieste? – Acrescentou.

Não largavam as mãos, um do outro. Não tiravam os olhos, um do outro. Estavam sozinhos naquele diálogo, naquela troca de perguntas. Queriam saber tudo em tão pouco tempo. Souberam apenas o essencial. O que é possível saber da vida de duas pessoas, durante 15 anos, em 5 ou 10 minutos.

António estava ligeiramente mais forte. Cabelo curto. Mantinha o afastamento dos dois dentes da frente, a que Laura sempre achou graça. E as mãos… não resistiu a olhar-lhe para as mãos. Peludas. Pelos longos, negros e lisos. Dedos compridos. Aliança no anelar esquerdo.

Deveria ter voltado a casar, pensou. Fez apenas, mais perguntas sobre o filho dele. Disse-lhe que entretanto, também tinha tido os seus.

Ficavam ali horas a fio, a conversar, assim fosse possível. Mas nenhum dos dois propôs trocarem formas de contacto. António acompanhou-a à porta quando ela decidiu que não podia ficar mais tempo. Tinha gente à sua espera.

………………………………………..

Precisava urgentemente, de contar uma história.
Esta, foi a mais bonita de que me lembrei.
Verdade se diga, já estava meia escrita há uns tempos.
Foi só acabar.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Vazio

(apontamentos)

O mais triste quando uma história acaba é não ficar história nenhuma para contar... a ninguém.