sexta-feira, julho 02, 2004

A primeira osga da minha vida

Acendi a luz da cozinha. Recortada na parede branca, à minha frente, por cima da porta, estava ela. Grande. Cinzenta. Imóvel. A primeira osga da minha vida.

Estava sozinha em casa, com os meus 3 filhos pequenos. Tinha acabado de os deitar e sabia que ainda estavam acordados. Era a primeira osga da minha vida, porque eu era a única pessoa adulta, frente a ela. Era eu que tinha que fazer alguma coisa. Não havia mais ninguém.

Sim. Já tinha visto mais osgas antes desta. Em locais, onde não me incomodava, que estivessem. Já tinha até coabitado, por alguns minutos, com elas. Tenho memória dessa experiência, uma ou duas vezes. Mas havia sempre outra pessoa adulta presente, que resolvesse o problema, isto é, que fizesse a osga desaparecer.

Por isso, esta foi a primeira osga da minha vida. Porque era só minha. Porque estava à minha mercê (ou eu à mercê dela).

Fiquei paralisada, a olhar para ela. Parecia que estávamos as duas a fazer um jogo. Qual de nós aguentava mais tempo, sem se mexer. Era o que parecia. A minha capacidade de raciocinar, também bloqueou. Depois desatou a funcionar, desenfreadamente. Telefono a alguém. Foi o primeiro pensamento. Não. Finjo que não vi a osga e vou-me deitar. Foi o segundo pensamento. Os outros pensamentos que se seguiram, serviram para me convencer de que não podia fingir que não tinha visto a osga. Que não ia conseguir adormecer. O último pensamento, ainda neste fio, foi imaginar a osga, na parede do quarto de um dos meus filhos. Assim, mesmo frente à cama, exactamente no momento em que acordassem, no dia seguinte.

Foi então que me decidi. Tinha mesmo que fazer alguma coisa. Percebo agora, que foi o instinto, que me levou ao armário para ir buscar uma vassoura. Foi sempre o que vi fazer, nas experiências anteriores. Uma osga, combate-se com uma vassoura. Deve ser. Por isso lá fui buscar a vassoura. Ok. Tinha a vassoura na mão. E agora? Faço o quê com a vassoura? Pensei abrir a porta, a ver se ela se ia embora, mas estava virada em sentido contrário. Serão inteligentes, as osgas? Lembro-me de me ter interrogado. Dava jeito que fossem. Abria a porta e convidava-a a sair. E educadas, serão? Aceitaria ela o meu convite para sair? Resolvi experimentar.

Abri a porta e afastei as fitas de protecção contra a entrada de seres vivos indesejáveis. Perfeitamente incompetentes, nesta situação (partindo do principio que a osga entrou pela porta). Aproximei a vassoura da osga, do lado oposto à porta, para ver se ela dava meia volta, em direcção à saída. Pois, meus queridos leitores, em verdade vos digo, que as osgas não são inteligentes nem educadas. O raio da osga, resolveu descer a parede e afastou-se mesmo, da porta. Parou a meio da parede, com a cabeçorra virada para baixo. Eu parei também, a olhar para ela. Comecei a ficar irritada. Fechei a porta e decidi que tinha que agir de outra forma. Matar a osga.

Que me desculpem os amigos de todos os animais, mas não consigo mesmo, gostar de osgas. Principalmente se forem burras e mal-educadas. E aquela, era. Tinha acabado de me dar provas, disso mesmo. Dei balanço à vassoura e bati com ela na parede. Percebi que além de ter medo de osgas, também não tenho muita pontaria. Mas não me deixei ir abaixo, porque imediatamente após a primeira pancada, dei logo mais não sei quantas. A minha pontaria é mesmo má. Só consegui separar a cauda da osga. Lá ficou a osga sem cauda, mas viva. Pior ainda. Fugiu para baixo da máquina de lavar loiça.

Confesso que me passou novamente, pela cabeça, a ideia de fingir que não tinha visto osga nenhuma. Se a adivinhasse quietinha debaixo da máquina, até ao dia seguinte, ainda me tentava pela ideia de me ir deitar, mas pensei que se as osgas têm pernas, por algum motivo deve ser e o motivo que me pareceu mais lógico, foi exactamente o de terem pernas para andar. Terem pernas para andar até à parede da frente da cama de um dos meus filhos. Não.

Acendi um cigarro e fumei-o rapidamente sem tirar os olhos do chão, da frente da máquina. A vassoura estava ao meu lado. Primeiro pensei que tinha que afastar a máquina, mas depois, tive uma ideia de génio (acho que foi por causa do cigarro). Lembrei-me do insecticida. Ok. Sei que só mata insectos. Que os répteis lhes devem ser imunes. Mas quem sabe, a osga não suportaria o cheiro do insecticida, e pelas suas próprias pernas, sairia debaixo da máquina (de preferência, para a frente). Era isso mesmo. Decidi despejar o spray todo para baixo da máquina de lavar. Tinha que ser por trás, para ela fugir para a frente e eu poder alcançá-la com mais facilidade. Impede-me o meu sentido do ridículo, de descrever aqui a forma como vazei um spray insecticida atrás e por baixo de uma máquina de lavar. Por isso vou passar à frente. Vazei o spray, é verdade. Até me senti mal disposta. O raio da osga não saiu.

Estava a começar a desesperar. Frustrada, encostei-me aos armários, do outro lado da cozinha. Tirei mesmo os olhos da máquina de lavar. Quando voltei a levantar o olhar, vi-a. Sim a máquina (era suposto continuar no mesmo sítio). Mas, à frente da máquina, no chão da cozinha, estava a osga. A mesma de há meia hora atrás. Reconheci-a, pela falta da cauda.

Ok. Decidida, peguei na vassoura. Tinha que agir rápido, antes que me fugisse outra vez. Mas vacilei na vassoura. Da primeira vez, tinha-me deixado ficar mal. Fui ao armário a correr, escolher outra vassoura. Tinha que ser mais rija. Mais eficaz. Voltei. A osga ainda lá estava (era mesmo burrinha). Ataquei a osga. Acho que durante o ataque, grunhi. Sim, porque aqueles gritos de sufoquei mal, na minha garganta, parecem-me agora, autênticos grunhidos. E acho mesmo, que foram os grunhidos, talvez mais ainda que a vassoura, que deram cabo da osga. Paz à sua alma.

Hoje, ao final de 40 anos, sinto-me finalmente, adulta. É isso que sinto. Talvez, me devesse ter aparecido uma osga pela frente, há mais tempo. Mas, sabe-se lá porquê, foi só agora. Nunca é tarde para crescer. Nunca é tarde para aprender. Eu aprendi, que por trás de uma mulher adulta, há sempre uma osga grande (ou melhor, havia). Prestou-me um grande serviço. Deus a abençoe, por isso.

1 comentário:

Anónimo disse...

Então aqui vai: E eu com saudades das osgas! É verdade. Parece estranho mas é assim. Matei algumas mas a maioria eram apenas ignoradas. Havia até quem gostasse de as ver do lado de fora da casa.
Mas agora, nada. Nem uma para amostra...
Um abraço
Manuel