segunda-feira, julho 26, 2004

Afinal é mesmo solidão

Estava eu a dar mais um avanço, devagar, devagarinho, no Livro do Riso e do Esquecimento, de Milan Kundera (publicado em 1979) quando a dada altura, reconheço nas suas palavras uma inquietação, que me avassalou há uns dias atrás. Exactamente no dia que escrevi “Mais eu que isto… é impossível.”. Resolvi por isso, partilhar convosco, as referidas palavras. E, a seguir, vamos conversar…

…”Quero falar de outra coisa. Há algum tempo, atravessei Paris de táxi e o chauffer era conversador. Não conseguia dormir à noite. Sofria de uma insónia crónica. Que datava da guerra. Tinha sido marinheiro. O navio havia-se afundado. Ele tinha nadado durante três dias e três noites. Depois repescaram-no. Passou muitos meses entre a vida e a morte. Curou-se, mas perdeu o sono.
«Tenho atrás de mim um terço de vida a mais que o senhor, disse-me a sorrir.
- E o que faz com esse terço que tem a mais?», perguntei.
Respondeu: «Escrevo.»
Quis saber o que escrevia.
Escrevia a sua vida. A história de um homem que nadou durante três dias no mar, que lutou contra a morte, que perdeu o sono e que, apesar de tudo, conservou força para viver.
«Escreve isso para os seus filhos? Como crónica de família?»
Sorriu com amargura: «Para os meus filhos? Não lhes interessa nada. É um livro que eu escrevo. Acho que podia ajudar bastante gente.»
Esta conversa com o chauffer de táxi esclareceu-me repentinamente sobre a natureza da actividade do escritor. Escrevemos livros porque os nossos filhos se desinteressam de nós. Dirigimo-nos ao mundo anónimo, porque a nossa mulher tapa os ouvidos quando lhe falamos.
Vão responder que no caso do chauffer de táxi trata-se de um grafómano e não de um escritor. Comecemos então por delimitar os conceitos. Uma mulher que escreve quatro cartas por dia ao amante não é uma grafómana. É uma apaixonada. Mas o seu amigo, que tira fotocópias da sua correspondência amorosa para a poder publicar um dia, é um grafómano. A grafomania não é o desejo de escrever cartas, diários, crónicas familiares (ou seja, escrever para si ou para os que estão próximos), é o desejo de escrever livros (portanto, de ter um público de leitores desconhecidos). Neste sentido, a paixão do chauffer de táxi não é uma paixão diferente da de Goethe. O que distingue Goethe do chauffer de táxi é o resultado dessa paixão. A grafomania (a mania de escrever livros) adquire fatalmente proporções de uma epidemia quando o desenvolvimento da sociedade preenche três condições fundamentais:

1) Um nível elevado de bem-estar geral, que permite às pessoas consagrarem-se a uma actividade inútil;
2) Um grau elevado de atomização da vida social e, por conseguinte de isolamento geral dos indivíduos:
3) A falta radical de grandes mudanças sociais na vida interna da nação… …

… Mas o efeito, por contra golpe, repercute-se sobre a causa. O isolamento geral engendra a grafomania, e a grafomania generalizada reforça-se e agrava por sua vez o isolamento. A invenção da imprensa permitiu outrora aos homens compreenderem-se mutuamente. Na era da grafomania universal, o facto de escrever livros ganha um sentido oposto: cada individuo se rodeia das suas próprias palavras como de uma parede de espelhos que não deixa filtrar nenhuma voz de fora.”

Uff!!!... Acabei. Então amigos, o que me dizem a isto? Dá que pensar, ou não?

Afinal, é mesmo solidão. Ou isolamento, o que em termos de resultado, me parece que vai dar ao mesmo. Esta história de andarmos para aqui, todos a blogar… Segundo o Sr. Milan Kundera, somos todos uns grafómanos, ou melhor, neste caso, blogamanos. Digo bem? Eu cá, acho que o senhor tem toda a razão. Eu, nesta minha pequenez de palavras e ideias… mas atrevia-me modestamente, a mais.

Preenchimento de linhas em branco, dizia o nosso par Manuel, do H Gasolim Ultramarino, num comentário que deixou no meu post Sinais de Alerta, que ironia do destino, apaguei indeliberadamente. Quereria ele dizer preenchimento de espaços vazios? Espaços sem nome. Haverá deste nosso lado real, em alguns de nós, algum espaço vazio, cujo preenchimento se faz com palavras escritas, para anónimos lerem? E será esse preenchimento eficaz? Se assim for, parece fácil. Coitados dos que não têm impulsividade para escrever. Ou seremos nós os coitados e eles, os restantes, os que não têm espaço vazio? Não havendo portanto, necessidade de qualquer tipo de preenchimento. Olha que bom!...

Grafómanos. Blogamanos. Talvez seja uma qualquer combinação genética que se forma para nos inquietar. Esta história das palavras com ânsia de se soltar, é uma verdadeira inquietação. Uma mania. Um vício. Uma necessidade absoluta de fazer sair. E nunca o espaço vazio ganha preenchimento.

Esta reflexão, sossegou-me confortavelmente em relação à questão da blogoesfera, da virtualidade, e dos perigos que é suposto, espreitarem de perto. Percebi entretanto, que a diferença entre a blogomania e a grafomania, é apenas uma questão de anos. Estou mais descansada. Mas porra!... se não é mau, é pior. Afinal também tem perigos. Solidão. Isolamento. Uma parede de espelhos que não deixa filtrar nenhuma voz de fora? Livra!!!!!!! Estou mesmo assustada. É que eu, para além de ser uma fala-barato com as palavras ditas, com as palavras escritas, vou muito além da grafomania. Vacilo mesmo, entre a mulher apaixonada ou escritora de que fala Milan Kundera (ele não deu outra definição para as pessoas que escrevem cartas aos que lhe são próximos e eu também não me atrevo) e a grafómana ou blogamana. Ele é posts. Ele é mails. Cartas para amigas. Textos para a gaveta. Cartazes de protesto. Até cartas aos meus filhos escrevo, a contar como foi o primeiro dia de Jardim Infantil ou a primeira vez de qualquer coisa, claro, para lerem daí a uns anos. Estou lixada.

Afinal Jorge, “enredadoramente viciante”, não é a virtualidade ou a blogoesfera. É mesmo esta impulsividade desenfreada para a palavra preferencialmente escrita. E agora, que faço eu? Da outra vez identifiquei-me e desta? Tenho que prometer tentar não deixar crescer a minha parede de espelhos? Pois claro. Lá terá que ser. Eu cá acho que vou no bom caminho. Olha o que a voz que me chegou de ti, me deu que pensar… Pensar? Escrever!... Porra!... caí numa armadilha. Eu lá pensar pensei, mas escrevi que nem uma maluca. Estou lixada. Todos os assuntos são bons para me fazer soltar palavras.

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