segunda-feira, junho 21, 2004

No Domingo passado

No Domingo passado acordei deprimida. Deprimida, não será bem a palavra certa. Relaciono-a sempre com falta de saúde, não sei porquê. E doente, eu não me sentia. Agora, que estou a pensar no assunto, acho que me sentia mais oprimida, que deprimida, porque me levantei com uma vontade de sair daqui, que não conseguia conter. Fugir. Sozinha. Era isso que me apetecia. Sair daqui, sozinha. Não ter que lidar com ninguém. Acho que estava cansada, isso sim. Sem energia. Sem saber ainda, a fuga ir-me-ia recarregar as baterias. Voltei como nova.

Quando reconheci a vontade, nunca me passou pela cabeça que fosse possível. Sair daqui um dia. Deixar os miúdos entregues ao meu marido, sempre tão ocupado. Mas surpreendentemente, era possível. Nem queria acreditar. Depois da possibilidade verificada, instalou-se a questão: ir para onde. O meu marido sugeriu logo a esplanada nova do miradouro, a poucos kms daqui. Era pouco. Tinham que ser muitos kms. Além disso, fui logo invadida pela minha imagem sentada na esplanada, horas a fio, de livro debaixo dos olhos e nádegas rígidas. Não me agradou. Pensei também na hipótese de estar suficientemente exposta para as abordagens inoportunas dos homens: Desculpe, tem lume? Posso fazer-lhe companhia? Sabe onde fica isto ou aquilo? Ou pior ainda, se não fossem educados. Na!!! Pensei eu. Gajos, não. Afinal, actualizei-me. Já não se metem comigo, na rua. Na esplanada, não sei, mas na rua, não. E mesmo quando me dirigem a palavra, por motivos perfeitamente aceitáveis, dizem “minha senhora”. O respeitinho pelos cabelos brancos, digo eu. Bendita a hora que os deixei de pintar. Desta já eu me livrei e agrada-me, sinceramente.

Fui devagarinho, assaltada pela ideia de andar de comboio. No comboio ninguém se metia comigo. Até Lisboa eram 1,5 h para lá, mais 1,5 h para cá. 3 horas de sossego, a ler, seguramente. O meu marido tentava demover-me. Porque não ia eu de carro. Devagarinho por aí fora, até à esplanada. E ele a dar-lhe, pensei eu. Nem esplanada, nem carro. Vou mas é até Lisboa e de comboio. Ele foi um querido e concordou. Porreiro, pensei eu. Detestava ir-me embora e deixá-lo contrariado.

Vesti-me. Vesti os miúdos. Fui escolher um livro para levar. Estava indecisa entre 2. Como não encontrei um, a escolha foi facilitada. O Livro do Riso e do Esquecimento. Milan Kundera. Ofereceu-mo aquela que foi a minha melhor amiga durante anos. Agora já não sei se é a minha melhor amiga. Não a vejo, vai para 10 anos. Foi viver para os EUA. Telefona-me de vez em quando, sempre a lamentar-se da minha falta. Juro que acredito que ela, ainda me faz mais falta a mim. Minha querida amiga. Que saudades… até fazem doer. Trocamos mails de quando em quando. Desde Dezembro que não recebo nenhum. Continuo a mandar-lhe mensagens. Não sei mesmo o que se passa. Ofereceu-me o livro uns meses antes de se ir embora. Já me tinha oferecido A Insustentável Leveza do Ser. Como percebeu que eu tinha gostado do autor, bisou. Escolher um livro para ler. Lembrar-me da minha amiga. Comecei a ganhar cor e lá fui eu até à estação do comboio. O meu marido levou-me. Os miúdos acompanharam-nos. Quando parámos, a minha filha mais nova, começou a fazer uma birra, uma birra não, uma birrona. Queria a chucha e a fralda. Tinha-me esquecido. Meu Deus! Tinha-me esquecido da chucha e da fralda. Tentei fazer-lhe entender que se não estava ali, não a podia querer. Está bem, está. Ela continuava a querer a chucha e a fralda. Senti-me tão culpada. Como pude ter-me esquecido. Estava a começar a afundar-me na culpa, quando o meu marido me disse para sair do carro. A bem dizer, ele não disse, ordenou. Normalmente, era o suficiente para eu fazer logo o contrário, mas ainda bem que desta vez, fui obediente, senão lá se ia a minha ida a Lisboa. Sai do carro. Nem olhei para trás. Comprei o bilhete. Esperei pouco tempo. Entrei no comboio.

Dei logo o primeiro fiasco. Não. Estou a brincar. Realmente foi fiasco, mas foi o único. Prometam que não se riem. Não dei com o número dos lugares. A sério. Entrei na carruagem certa, na classe certa e depois não dei com o número do lugar. Fiz a carruagem para lá. Voltei… e nada. Não via os números. Até levantei discretamente a película de protecção de cabeça, num dos bancos, para ver se estariam escondidos, mas não. Pensei: Porra! Não vou perguntar a ninguém onde estão o raio dos números. Não vou não. E não perguntei mesmo. Se não me tivesse apercebido de uma rapariga a olhar para mim, ainda fazia o corredor outra vez. Assim, embiquei logo para o bar. É que de repente, surgiu-me uma vontade incontrolável de beber um café. Tirem-me daqui!!!

Entrei no bar a cambalear (por causa dos solavancos do comboio). Um gajo, no banco junto à janela. Olhou insistentemente para mim. Rosnei logo, mas ele não ouviu. Numa das duas mesas, um casalinho. Pedi o café ao empregado e comecei logo a rezar baixinho para ele se despachar com a merda do café, antes que viesse alguém e se sentasse na mesa vazia. Não me apetecia nada ter que ir beber o café para os bancos, junto à janela. Despachou-se. Fui-me sentar na mesa. Ainda estava a mexer o café, entrou o revisor. Quando se aproximou de mim e me pediu o bilhete, aproveitei logo para lhe perguntar, o mais baixinho que consegui, onde estavam fixados afinal, os números dos lugares. Felizmente o homem ouvia bem e respondeu-me que estavam na parede, junto às cortinas. Se é lá sítio para se porem o números, sinceramente. Como o café estava quente, resolvi tirar o livro da mochila. Rapidamente, tal qual uma nódoa, me infiltrei nas suas páginas. Só voltei a levantar os olhos, quando uma senhora, uns 10 anos mais velha que eu, magra e muito bem apresentada, se aproximou de mim e me perguntou, num português estrangeirado: Desculpe, sabe como é que isto se abre? Era uma sandes mista, dentro de uma daquelas embalagens triangulares de plástico. Abria-se como todas as outras, só que aquela estava selada com um autocolante. Foi canja. Desenrasquei-me logo. Desfiz-me em simpatia com a senhora. Para ser mais prestável do que fui, só faltava comer a sandes, por ela. Lá lhe disse qualquer coisa que a fizesse pensar que aquilo acontecia a qualquer um. Quando me agradeceu, pensei que quem devia agradecer era eu. Mal sabia ela que tinha acabado de apagar completamente, a minha frustração de há bocado com os números. Afinal, entre não saber abrir uma embalagem de sandes e não conseguir ver os números dos lugares de um comboio, venha o diabo e escolha.

Acabei por fazer a viagem toda, no bar. Cheguei a Lisboa. Desci no Cais do Oriente. Acendi um cigarro. Pus a mochila às costas e lá fui eu. Sentia-me um bocado incomodada. Parecia que me faltava alguma coisa. De repente percebi o que era. Não sabia o que fazer com as mãos. Faltavam-me as miúdas. Uma de cada lado. Lá interiorizei que estava sozinha, esqueci que tinha mãos e, passados 10 ou 15 minutos, já estava como peixe na água. Que feliz que me sentia. A sério. Parecia eu que estava a conhecer uma cidade nova. E estava. Há mais de 8 anos, pelo menos, que não fazia isto. Já fui uma data de vezes ao Parque das Nações, mas sempre com os miúdos. Percebi, no Domingo passado, que me toldam a vista. Reparei em coisas que nunca tinha reparado. Parecia uma esponja. Observava tudo e andava. Fui onde me apeteceu. Comi quando me apeteceu. Vi montras até me fartar e demorei o tempo que quis à frente delas. Entrei em lojas, mexi nas coisas. Estive dentro duma livraria, o tempo que quis. Meu Deus! Já nem me lembrava do cheiro das livrarias. E, andava, andava… Só parei para comer 2 fatias de pizza, beber uma coca-cola e encontrar-me novamente com Milan Kundera.

Quando me começaram a doer os pés, achei que estava na hora de vir embora. Eram quase 6 h da tarde. Já tinha comprado lembranças para os miúdos. Estava tudo feito. Com uma paz de espírito imensa, aproximei-me da estação. Veio o comboio. Entrei. Sim!!! Dei com os números dos lugares. Desta vez, estavam onde deviam estar. Acomodei-me novamente nas páginas do meu livro. Quando cheguei, esperava-me o festival do costume. Mas soube-me bem. Já estava com saudades. E as favas que o meu marido tinha preparado para o jantar, pareceram-me deliciosas.

Que dia tão bom. Foi a única coisa que tive tempo para pensar antes de adormecer.


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