sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Eu sei que me ficou mal

Dei-me conta dele, de tal modo, colado às traseiras do meu carro, que vacilei antes de encostar o pé ao travão, quando a rotunda se aproximou. Não me tocou.

À primeira oportunidade, cheguei-me à direita, na estrada, rezando a todos os santinhos para que me ultrapassasse. Não me ultrapassou.

Quem sabe, atraído pela minha guedelha, hoje particularmente mais desalinhada do que é habitual, manteve-se colado às traseiras do meu carro, de tal forma me enervando, que baixei o volume do rádio, para melhor me concentrar nas manobras do meu companheiro de viagem (assim sou obrigada a chamar-lhe, tal era a nossa proximidade).

Espetei os olhos no retrovisor e deparei-me com um verdadeiro exercício à arte de bem saber imaginar. Todas as feições naquele rosto tinham que se descobrir. Desbravar. Calculei sem grande convicção, 2 estreitos dedos de testa, entre as sobrancelhas e uma imensidão de grossos caracóis grisalhos. Nunca vi bigode tão farto e crespo. De tal maneira, farto e crespo, que se me revoltou o estômago, quando breve, breve, atravessou o meu pensamento, a imagem daquela boca a mastigar fosse o que fosse.

Não me voltei a atrever a olhar para o retrovisor.

Ainda me passou pela cabeça não parar o carro no semáforo, escudando-me na permissividade da luz amarela, entretanto substituída pela vermelha, mas pareceu-me mal… e parei mesmo.

A sério, que também me pareceu mal, ver pelo canto do olho, o vulto vermelho do carro do meu companheiro de viagem a parar ao lado esquerdo do meu. À mesma, próximo demais, que se quisesse abrir a minha porta, não conseguia. Acho que foi esse o problema maior. Sentir-me presa. Pressionada. Incomodada. Lesada na minha liberdade. Na minha vontade. Neste caso, obrigada a permanecer dentro de um carro… donde não pretendia sair.

Atrevi-me a olhar para ele. Olhos nos olhos. O homem confundiu-se com certeza. Descaradamente, passou sem qualquer delicadeza, o polegar, no sítio onde supostamente seriam os lábios. Duma ponta à outra… vagarosamente. Tal e qual faz o rapaz do anúncio do Martini. Bem… não foi mesmo, tal e qual… faltou-lhe a delicadeza, o rosto bonito, a convicção… até os óculos de sol. Em contrapartida, sobrou-lhe unha… no dedo mindinho (a sério, que pensava que já não havia quem usasse essa unha mais comprida que as outras). Tentou ainda e simultaneamente, um olhar sedutor. Tentou.

Se não acho piada alguma a esse gesto no anúncio, que o nem consigo entender, naquela pessoa, naquele homem tão abundantemente provido de pêlos e cabelos, foi simplesmente agoniante, aterrador (temo aliás, os pesadelos que vou sonhar esta noite).

Mais forte que eu, fiz uma coisa que nunca me lembro de fazer, senão com os meus filhos claro, numa linguagem muito própria, muito nossa. Um gesto que significa que não gostamos mesmo nadinha, de uma qualquer coisa. Foi o que me ocorreu de imediato. Responder-lhe igualmente, em linguagem gestual. Com o ar mais agoniado que consegui fazer (garanto que não me esforcei muito) simulei a introdução dos dedos indicador e médio na boca, a provocar o vómito.

Eu sei que me ficou mal.

Curiosamente, muito curiosamente… reagiu da melhor maneira possível. Soltou uma gargalhada que consegui ouvir dentro do meu carro. E fez-me sinal com o polegar, que tinha considerado porreira, a minha reacção. Imediatamente, seguiu caminho sorridente… ainda com o sinal vermelho.

Eu esperei a minha vez. Depois, virei na primeira rua à direita, estacionei o carro e saí para beber um café. Decidi que me sentia mais confortável, supondo que a distância entre o meu carro e o dele, era a maior possível.

4 comentários:

Keratina disse...

Se ao menos ainda fosse jeitoso...Agora com um aspecto desses...Bahhhh, nem valia a pena o esforço. Fizeste bem. Espero que ao menos depois de um cafezito e um cigarrito a coisa te tenha parecido tão patusca que até tenha dado tema de um post.Jokas das gandes e um sorriso rasgado.

Aq disse...

É. O homem realmente tinha um aspecto estranho. Um comportamento, também. Mas a reacção dele no fim... bem... afinal... tinha mais sentido de humor que eu. Foi do que me dei conta, enquanto bebia o café. Beijinho grande.

riacho disse...

Estava curiosa em ver como tinha terminado tal episódio.
Bem... e eu terminei exactamente como o tipo do carro ;-)
(eh eh eh)
Beijinhos com saudade.

(vê se na próxima penteias o cabelo, mulher!)

Aq disse...

É, a reacção dele foi engraçada. Engraçada e conveniente. Porque com aquele ar de homem das cavernas, bem podia ter saído do carro com uma moca na mão... ou decidido a arrastar-me pelos cabelos... Enfim... tive sorte, apesar de tudo. Esta fase de falta de pachorra que me acompanha nas últimas semanas, ainda me pode trazer dissabores. Beijinho grande.