sexta-feira, novembro 11, 2005

O grito sussurrado

Ouvi um grito lá em baixo.
Um?
Uma data deles.

Ao primeiro, sobressaltei-me. Nos seguintes, sosseguei. Depressa me convenci que eram gritos de brincadeira. Mas, por via das dúvidas, fui ver o que se passava. Ao topo das escadas, vi-o. Estava lá em baixo, à porta de saída. Rentinho ao limite que eu lhe tinha dado.

Pois… tinha acabado de lhe explicar uns minutos atrás, o que era “fora da porta” e o que era, “dentro da porta”. A porta está sempre aberta, por isso, tracei uma linha imaginária com o braço, no lugar da porta, se estivesse fechada e disse-lhe:

- Percebes? Daqui para ali é fora. Dali para aqui é dentro. E eu não te quero “fora da porta”. É a terceira vez que te digo isto, hoje.

Tive ainda o cuidado de lhe explicar o que era perder a confiança numa pessoa. Dei-lhe exemplos. Disse-lhe que não queria perder a confiança nele. Que ele, também não havia de querer que eu a perdesse. E, de facto, quando cheguei ao topo das escadas e o vi rentinho ao limite de “dentro da porta”, tive a certeza que ele tinha percebido tudo.

Fiquei bem contente. Contudo, tinha que lhe perguntar:

- Olha lá?!... para que é que tu estás a gritar assim? Pensei que te tinhas magoado.

Olhou para mim. Virou-me as costas e continuou a gritar. Desci as escadas, pois claro. Cheguei ao pé dele e sentei-me calada, no degrau de “dentro da porta”. Ele continuava a gritar. Agarrei-lhe suavemente no braço e repeti:

- Queres que as pessoas pensem que te magoaste, é? Que venham a correr ver o que se passa?

Parou de gritar, olhou para mim com o ar mais inocente deste mundo e perguntou-me:

- Vêm?

Nesta altura do campeonato, não passava uma vivalma lá fora e os outros 2 miúdos que se encontravam cá em baixo, estavam já, expectantes, quietinhos, a ver como se desenrolava a situação. Um, deitado em cima do balcão. O outro, de pé e cotovelos apoiados sobre a mesa. Ambos olhavam na nossa direcção.

Como não respondi ao “vêm?” ele deve ter entendido, que se calhar vinham mesmo. Resolveu por isso, voltar a gritar. Então, eu perguntei-lhe:

- Sabes a história do leão que gostava de pregar partidas?

Respondeu-me que não, já os olhos lhe brilhavam. Comecei a contar uma história de um leão que gostava de gritar na selva a fingir que se tinha magoado. Os outros animais, vinham todos a correr e quando chegavam junto do leão, ele ria-se e confessava que tinha acabado de pregar uma partida. Os outros animais ficavam muito zangados. Ralhavam e iam-se embora.

Não sei se nesta parte da história, se antes, se ligeiramente depois, já tinha companhia no degrau de “dentro da porta”. Os outros dois miúdos, tinham-se junto a nós, para ouvir melhor a história… digo eu. Continuei.

Então, o leão da minha história, pregou essa partida umas três ou quatro vezes. Até que um dia, magoou-se a valer e claro, gritou a pedir ajuda. Os outros animais ouviram-no, mas pensando que estivesse a brincar, não foram em seu socorro. E o leãozinho viu-se ali à rasquinha. E teve que se desenrascar sozinho.

Ficou a olhar para mim, demoradamente. Pensativo. Demorou tanto a olhar para mim, que me deu tempo para concluir que tinha consolidado a moral da história. Por isso, levantei-me como se tivesse terminado uma tarefa e preparei-me para subir as escadas. Lá em cima estavam mais sete ou oito miúdos à minha espera.

Foi quando o vi e ouvi, a sussurrar um grito, com a cabeça espreitando para “fora da porta”:

- Socorro!... ajudem-me.

Repetiu-se, sem subir o tom da voz, acompanhado por gargalhadinhas dos outros dois miúdos. Eu, continuei a subir as escadas, rezando a todos os santinhos para que não subisse o tom do grito sussurrado. Se o fizesse, eu teria que voltar a descer as escadas. Mas não saberia seguramente, como convencê-lo de que não deveria, não poderia, estar a gritar. Antes de entrar na sala de cima, olhei para trás. Já ele não sussurrava gritos. E o outro, ainda não tinha voltado a deitar-se sobre o balcão. Por isso sorri-lhes. Respirei fundo. E, entrei mesmo.

........................................

Ora bem… eu desta vez, safei-me. Mas safei-me porque o consegui sugestionar para apenas um, dos motivos que fazem as pessoas gritar. O grito de aflição. Mas também há o grito de chamar a atenção, por si só, que eu propositadamente, desviei desta situação. Vai ser uma gaita, se ele se lembrar de voltar a gritar e perceber que não tenciona pregar partida nenhuma. Como é que eu lhe hei-de explicar que não se chama a atenção das pessoas daquela maneira? Lá terei eu que inventar outra história, é o que é. O fim-de-semana vem mesmo a calhar. Dá-me tempo.

Ah!... o menino desta história, tem 7 anos, acabadinhos de fazer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Imagino o esforço que fazes, para te conteres...
Eu não consigo!
Bolas, miuda, eu não consigo.
Descabelo-me logo toda...
:-)
Bom ler-te aqui.