(é dela que me lembro)
Eu tinha ficado sem carro. Uma avaria. Haviam de me ir buscar. Por isso, eu esperava à beira da estrada, no sítio combinado. Aproximadamente a 12 Km da loja.
Foi quando a vi. Parecia um cão a farejar. Andava apressadamente, decididamente, à procura de qualquer coisa no chão. Do outro lado da estrada. Despertou a atenção das pessoas, que a olhavam, curiosas. Observei-a durante 2 ou 3 minutos. Dois passos para um lado, três ou quatro para o outro, mais não sei quantos noutra direcção, desenhando uma confusão de linhas num espaço pequeno de chão. Instintivamente, tentei atravessar a estrada. Não sei se para a ajudar, se para a travar. O trânsito, não me permitiu atravessar a estrada, por isso comecei a chamar-lhe a atenção. Já não me lembro como, porque nunca cheguei a saber o nome dela. Mas consegui. Ela olhou para mim. Atravessou imediatamente, correndo o risco de ser atropelada. Senti um valente aperto no coração. Mas ela escapou. De repente, já estava ao pé de mim. Satisfeita por me ver. . Cumprimentei-a com dois beijinhos. Nem disse nada sobre a travessia da estrada. Perguntei-lhe apenas se tinha perdido alguma coisa. Respondeu-me que não, que andava apenas, à procura de rolhas de cortiça. Nem me atrevi a perguntar-lhe para quê, nem porquê, naquele sítio à beira de uma estrada movimentada e barulhenta. Não havia sinal nenhum, de que naquele lugar, pudessem haver rolhas de cortiça espalhadas pelo chão.
Preocupei-me. Como tinha ela chegado ali. Como voltaria para casa. Tinha vindo a pé, disse-me. E voltaria, também. Costumava fazer aquelas caminhadas, explicou-me. Saía de casa de madrugada e andava até ao meio do dia. Nessa altura, voltava para trás, por forma a regressar a casa, ao final da tarde. Salientou que tinha que ser até ao final da tarde, para a mãe não se preocupar.
Começou a contar-me despropositadamente, episódios de vida de uma mulher e do filho desta. A desilusão, quase traição que lhe fez sentir. O sofrimento que lhe causou. Usava um vocabulário rico, que não combinava com a boca dela, desprovida de vários dentes, com aquele aspecto tão simples, quase desleixado. Eu ouvia-a com atenção, mas não conseguia abstrair-me da preocupação que me causava. Queria perguntar-lhe se tinha comido. Se tinha dinheiro. Não fui capaz. Interrompia-a só, volta e meia, quando parava o seu discurso para respirar e me dava oportunidade para intervir. Tentava convencê-la a voltar comigo. Em vão.
Chegou entretanto a minha boleia. Forcei-a a calar-se, prendendo-lhe as mãos. Insisti quase desesperadamente, para que voltasse comigo. A minha boleia, estava a empatar o trânsito e eu tentava convencê-la. Desisti quando ela me fez uma festinha no rosto e com um olhar terno, fixado nos meus olhos, me disse:
- Não se preocupe comigo. Vá. Eu fico bem.
Aquele olhar e aquela frase, pareceu-me um poiso breve, breve, na realidade. Um desvio rápido, de um caminho delirante, alucinante. Não sei se acreditei que ficava bem, mas as insistentes buzinadelas do trânsito, fizeram-me desistir. Beijei-a novamente, despedindo-me. Ainda lhe perguntei se tinha a certeza. Acenou afirmativamente com a cabeça e conseguiu manter o olhar terno, até eu virar costas. Esta fora a terceira vez, que a tinha visto.
A primeira foi quando me entrou pela loja adentro, rápida e decidida. Travou o andar à minha frente, logo a seguir à porta e perguntou-me se podia ver. Respondi-lhe que sim, obviamente, que estivesse à vontade. Dirigiu-se imediatamente a uma das estantes, como se soubesse exactamente o que procurava. E, em movimentos rápidos e precisos, agarrou em três peças, enquanto dizia:
- Isto, isto e isto.
Poisou as peças sobre o balcão e perguntou-me se as podia guardar. Que voltaria a seguir ao almoço para as ir buscar e pagar. Era um pequeno vaso de barro, uma jarra branca de loiça e uma pequena peça em cristal com a figura de três macacos, cada um tapando respectivamente, os olhos, a boca e os ouvidos, na simbologia de “não ver, não falar e não ouvir”.
Da mesma maneira que entrou, saiu. Rápida e apressadamente. Deixando-me a pensar. Tinha sido uma aparição pouco comum. Ela própria, invulgar. Cabelos grisalhos e rebeldes, nem compridos, nem curtos. Camisa axadrezada aberta, por cima de uma qualquer t-shirt e por fora das calças de ganga. Sapatos rasos. Franzina. Muito magra, mesmo. Aparentemente, entre os 40 e os 50 anos.
Não voltou, nesse dia a seguir ao almoço, nem nas duas, três semanas a seguir. Mas eu não me atrevi a voltar a expor as peças que me pediu para guardar. Algo me dizia que ela voltava. E eu estava certa. Voltou, sim. Como se não tivesse passado tempo nenhum, senão o combinado. Cumprimentou-me, simpática. Retirou uma nota dobrada do bolso das calças, mais umas moedas e disse-me:
- Venho buscar as minhas peças.
Embrulhei as peças. Fiz a conta. O dinheiro que ela me tinha antecipadamente, posto em cima do balcão, estava certo com a conta que tinha a pagar. Acho que franzi a testa, impressionada, mas nem disse nada. Como é que aquela mulher fixou o preço das coisas, numa entrada e numa escolha tão rápidas? Como é que ela não se tinha esquecido do valor exacto, que nem redondo era, ao final daquele tempo todo? Fiquei com a nítida sensação que ela tinha andado a juntar dinheiro. E que finalmente junto, poderia ir buscar as coisas que queria.
Agradeceu e ia a sair. Mas voltou para trás. Ainda bem que o fez. Porque nos momentos seguintes, aquela mulher proporcionou-me um prazer imenso. Só de a ouvir falar. Falou de crianças de uma forma perfeitamente hipnotizante. Fazendo-me acreditar que já teria sido professora, educadora, qualquer destas actividades relacionadas com crianças. Concordei com tudo o que disse. Parecia que estava a ouvir o meu próprio pensamento, injectado por uma melhor capacidade de raciocínio. Fazia uma escolha de palavras correcta, adequada, elaborada. Não vacilava nunca, como se de um texto decorado se tratasse.
Depois falou de plantas, e flores. Falou do Sol também, e da sua luz. Só lhe interessava o dia, enquanto houvesse luz. Preferia dormir, durante o escuro, à espera que o Sol nascesse outra vez. Eu estava perfeitamente deliciada com aquela mulher, com aquele discurso. Pouco ou nada disse. Era um crime interrompe-la. Contou também alguns episódios da vida dela, relacionados com familiares, com amigos. Contou-me como se nos conhecêssemos há algum tempo. Sem pudor. Só parou de falar e saiu da loja, quando entrou outra cliente.
Voltei a vê-la depois, passado semanas, nesse tal dia em que o meu carro avariou, à beira da estrada, à procura de rolhas de cortiça, no chão.
A última vez que a vi, foi na semana passada. Entrou na loja tão apressadamente que me assustei. Mais uma vez, decidida. Como se tivesse saído de casa, para ir à loja , propositadamente. Desta vez, percebi logo que não ia comprar nada, porque começou imediatamente a falar. Eu estava a trabalhar e parei para a ouvir. Desta vez, intervi mais. Desta vez, foi mais uma conversa do que um monólogo. Percebi finalmente, que aquela mulher já tinha sido profissionalmente, activa. Mas não, na área que eu julgava. Percebi também que vivia há dez, doze anos, uma doença do foro neurológico. Fazia tratamento. Finalmente fazia tratamento, porque tal como me disse, tinha andado anos, sem querer tomar os comprimidos. Um disparate, admitia. E durante esses anos, em que não quis tomar os comprimidos, viveu em posição fetal, sobre um sofá. Levantava-se apenas, para ir à casa de banho, para beber água e comer colheradas de mel. Lá comia mais qualquer coisa, sempre líquidos, quando a mãe a conseguia convencer.
- Eu não queria viver, mas tinha um instinto de sobrevivência muito grande. ‘Tá a ver?... água e mel. Eu era só pele e osso, mas nunca mais morria. Por isso resolvi começar a tomar os comprimidos e olhe… ainda aqui ando.
Voltou a falar da tal mulher e do filho desta. Da desilusão que lhe causou, fazendo-me pensar que tal desilusão, teria sido contributo para tamanha tristeza e desinteresse pela vida. Intuí também, pelas palavras dela, que teria porventura, uma orientação sexual diferente da minha. Que aquela criança de que falava, era como se fosse filha dela. Que a privação à criança, a que a tinham sujeito, a fazia sofrer ainda. Eu ia fazendo uma pergunta aqui e ali, à qual ela respondia prontamente. O meu interesse naquela conversa, nas palavras dela, era imenso. Por isso fiquei desiludida, quando percebi que repentinamente, tinha decidido ir-se embora. A despedida foi rápida. Mas, chegada à porta, ela voltou atrás e disse-me:
- Esses seus olhos são Sóis.
Saiu logo a seguir. Arrepiei-me toda. Dei a volta ao balcão e corri atrás dela até à porta, chamando-a. Ela voltou atrás. Eu precisava de dizer uma coisa. E entendi que ela precisava de a ouvir.
- Oiça – disse eu - Eu quero-lhe dizer uma coisa. Da próxima vez que você cá voltar, eu já não devo cá estar. Vou deixar a loja. Vou trabalhar para outro sítio. Mas… queria que soubesse uma coisa. De todas as pessoas que aqui conheci, você foi a que me tocou mais. Queria só que soubesse isto.
Os olhos dela humedeceram, imediatamente. O nariz avermelhou. Olhou para mim durante uns segundos. Não disse nada. Deu-me um abraço apertado, demorado, ao qual eu correspondi, e virou costas rapidamente. Fiquei a observá-la. Seguia caminho a passo apressado. Cabeça baixa. Nas mãos levava um pequeno molho de flores, que eu tinha no chão da loja, junto ao caixote e que teriam ido para o lixo, se ela não mas tivesse pedido, a determinada altura da conversa.
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Cada vez me convenço mais, que basta um passo em falso, uma particular característica, um enorme desgosto, eu sei lá… para que qualquer um de nós, possa resvalar para fora de um padrão de comportamento dito normalizado. Mas a verdade, é que todas as pessoas que tenho encontrado neste meu percurso pela vida, desenquadradas deste tal padrão dito normalizado, são pessoas interessantíssimas. Fortes, sensíveis e sobreviventes. Despertam definitivamente, a minha atenção.
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