domingo, outubro 10, 2004

Cidália


De cabelo imenso, comprido, volumoso, seco. Cor de palha, mesmo. Podia ser bonito, muito bonito, se fosse bem tratado. A pele do rosto, de mulher jovem, borbulhosa de quando em vez, nada seca, plena de vida ainda. A apresentação, quase sempre descuidada. Duvido que não fosse vaidosa, que não gostasse de andar sempre bem. Apenas, não podia, não tinha forma de o fazer. Não era feia. Parece-me até que era bonita. Ou teria condições genuínas para o ser. A idade? Não sei exactamente, mas mais de 26 ou 28, não tinha seguramente.

Quatro, eram os filhos que tinha. Dois rapazes e depois, duas meninas. O Miguel… o Miguel… porra!... que saudades tenho eu do Miguel. Dos pulos que me dava para a cintura. Da força com que me enlaçava as pernas. Dos beijos repenicados, com aqueles lábios sempre húmidos que me besuntavam toda. Tem piolhos, diziam-me frequentemente. Tem piolhos. Se os tinha, eram dele… nunca passaram para aqui, nem nunca tive medo que passassem. Dava tudo por aqueles abraços. Nem com os ciúmes dos meus filhos me importava. O Miguel, nos seus 6 anitos, de olhos vivos, negros, imensos de tamanho e brilho. Esmoreciam apenas quando estava doente. Percebia logo que não estava bem, pelos olhos. Bastava-me confirmar com a Cidália, para saber que não estava enganada. E preocupava-me tanto, durante dois ou três dias, o tempo que ele demorava a ficar bom. Por vezes, dava comigo a adivinhá-lo limpinho, de unhas cortadinhas, caracóis sedosos (sempre me fascinaram os cabelos encaracolados), perfumado. Mas o Miguel era filho da Cidália e melhor mãe que ela não podia ter.

Recordo as conversas que tinha com a Cidália. Eu na minha pose de senhora de bem, que não tem onde cair morta. Ela, confidente. Eu conselheira. Ela, ainda mais confidente. Não éramos amigas. E ela, de facto, estava sozinha. A Cidália estava sozinha. Tinha os dois rapazes com ela. Viviam num barracão qualquer, que eu nunca consegui ir ver, apesar dos imensos convites que me fazia. As duas meninas, estavam num colégio qualquer, onde ela também já tinha estado até aos seus 13 anos.

- Elas estão bem. Oxalá consigam aproveitar a oportunidade e se façam lá mulherzinhas como deve ser. Que era o que eu podia ter sido se a minha avó não me tivesse lá ido buscar para trabalhar no campo.

Era o que me dizia frequentemente, quando conversávamos. Os meninos também já tinham estado num lar qualquer. Mas não estavam bem. Um dia foi visitá-los e encontrou o Miguel meio despido. O Zé, o mais velho, tipo bicho, sem soltar uma palavra. Queria trazê-los logo. Chamaram mesmo a GNR. Não os deixaram trazer nesse dia. Enquanto não resolveu o assunto, não veio para casa. Adivinhou-a sozinha, longe de casa, sem dinheiro, desesperada. Nem consigo imaginar onde terá dormido, o que terá comido. Só consigo imaginá-la a chorar, a suplicar que lhe dessem os filhos, que não estavam bem. Na verdade, eles vieram. Foi no Natal, de há 2 anos. Foram recebidos como príncipes, na festa da escola. E o Miguel, saltou-me para a cintura, nas suas pernas decididas, orgulhando-me de morte, fazendo-me sentir uma privilegiada, porque aquelas pernas não apertavam mais nenhuma cintura, senão a minha. Meu querido Miguel.

Passados um, dois anos, não sei, queriam tirar-lhe os meninos outra vez. Que estariam melhor num colégio, que ela não os alimentava bem, que andavam muito sujos, mal vestidos. A Cidália andava a varrer as ruas, na altura. Ganhava algum dinheiro. Os filhos iam à escola todos os dias. Almoçavam na escola todos os dias. A Cidália pagava os almoços todos os dias. Porra!... não andavam limpinhos, não senhor. Nem perfumados, nem bem vestidos… mas eram felizes, riam, sorriam, brilhava-lhes o olhar. Tribunal para aqui, tribunal para ali e a Cidália tinha que arranjar casa em condições para viver com eles. Duas casas foram-lhe negadas ser arrendadas. A ela, só porque era a ela. A Cidália não tinha mãe e mais valia não ter pai. A Cidália não tinha amigos. A Cidália não me tinha a mim. A Cidália estava sozinha.

Um dia apareceu-lhe aquele que foi o seu primeiro namorado, agora homem descomprometido. A Cidália foi com ele e levou os filhos. O homem tinha uma casa. Era o que ela precisava para não lhe tirarem os filhos.

Ao Miguel e ao Zé, nunca mais os vi. A ela, sim. A ele, também. Uma vez. Foi quanto bastou para perceber, que a Cidália realmente precisava de uma casa. Era só da casa, que ela precisava, não era de homem nenhum. Não consigo imaginar os olhos do Miguel a brilhar, nem os do Zé, nem os da Cidália… e queria tanto conseguir.


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Cada vez mais, me sinto incapaz de julgar os outros pelas aparências, pela roupa de marca que usam, pelo perfume, pelo carro, pela casa, pela actividade profissional, em suma... pelo estilo de vida. Cada vez mais, preciso de ouvir de viva voz, de olhar nos olhos, de tocar e de me abandonar ao contexto das situações, para conseguir julgar. Mesmo assim, nunca consigo. Limito-me a aceitar as pessoas como são, com tranquilidade. Ricos, pobres, bem vestidos, mal vestidos, mais ou menos perfumados... nao interessa. São pessoas. E se são pessoas de bem, merecem todo o carinho, todo o respeito. E porra!... não há piolho nenhum que me demova. Há 6 meses que não vejo o Miguel e chora-me tudo de saudade.

11 comentários:

PARTILHAS disse...

É por isso que se gosta tanto de ti... tens sempre colo para mais um!

VdeAlmeida disse...

Pois...não sei que te dizer. Aliás, acho que raramente sei o que dizer quando leio o que aqui deixas. Fico assim...Bolas! tu sabes tão bem como eu, porque também ficas assim muitas vezes.
Fiquei com vontade de conhecer os meninos.
(e nem me fales em carcóis, nem imaginas os anos de esforço para me ver livre dos meus e eles voltam todas as manhãs :( )
Domingo feliz, coração sem par

inconformada disse...

Ai deixa-me imitar a Fia: és uma mulher e pêras e nunca deixes que te digam o contrário !
Ouviste ? :-)
Beijo enorme nesse coração imenso

Anónimo disse...

da Mamãããã!!! em mfcf@net.sapo.pt:
Fiquei emocionada com o texto, com as emoções e com a verdade. Devia haver mais gente como tu, para nos lembrares do que realmente importa.
Um abraço.

Anónimo disse...

É engraçado falarem em pêras. Acabo de apanhar uma cesta delas. Das boas. Das Rocha. Vou mandar o meu Zé entregar-vos umas poucas. Mando também umas nabiças que o alfobre está repleto, não vão é escolhidas. Mas as meninas sabem como se faz, não é? Basta terem atenção à lagartixa, tirar uma folha ou outra menos própria, e passar por duas águas. Aquinha, se elas tiverem muitas dificuldades tu dás-lhes uma ajuda ok? Sabes como é, até uma simples sopa de nabiça confunde as amigas da cidade. E atenção ao azeite! Não deve ferver. Põem só no fim, um nadica antes de desligar.

Ihihih, já as estou a imaginar todas escaldadiças, à volta da panela, com os cabelos desarranjados pelo vapor e um ar desacoroçoado a olharem de soslaio para o telefone e o nº da Telepizza.

Aquinha és uma querida! Então tu abres este espaço para eu te poder visitar? Fica sabendo que muito me sensibilizaste, e que me arrancaste uma lagrimita, eu que num sou nada de chorar pois que a ultima vez que chorei foi qnd o Zé me pediu em namoro aos meus pais coitadinho, que ele tremia todo, e com razão que o meu pai não ia em modas e ninguem sabia como ia reagir, mas graças a Deus reagiu menos mal, e até lhe apertou a mão.

Venho visitar-te sempre que puder, e não venho mais vezes porque ando sempre arreliada em trabalho, ainda agora como sabes a porca teve crias e não tem tetas para todos e é uma trabalheira tão grande que por vezes ainda penso em experimentar a vida da cidade, mas depois caio e mim, e ninguem me separa das minhas galinhas!!

Vejo agora que também tens música no teu blog. O problema é que num oiço nada. No blog da Partilhas oiço bem, embora eu ache e já lhe pedi para por umas coisinhas mais mexidas, se bem que esta canção do velho mafarrico seja calmante. Acho melhor veres o que se passa.

JinhusJinhusJinhus

Bina

Fátima Santos disse...

Se tu soubesses como este post ...Oh! meu deus! que coincidências! este tema...e eu que não consigo escrever uma linha sobre...vais perceber, espero, um dia! Como eu entendo/sinto/estou inteira nos piolhos e no resto!!!
Um abraço

VdeAlmeida disse...

Mas afinal onde é que tu andas? Chiça!!! Tou farto de apanhar chuva aqui à esquina à tua espera. Deixo quatro beijinhos

riacho disse...

Ainda bem que deste sinal de vida :-)

Quando chegar a casa trato de dar mais algumas anotadelas para as quatro.

Cuida-te. Um beijo grande.

JPN disse...

parei aqui, nesta sinceridade. nesta humanidade. as coisas mais importantes que aprendemos são tão simples. gratias.

JPN disse...

o meu comentário surgiu depois de ter lido o teu texto a partir do ponteado...quando li Cidália percebi que era o mesmo texto. a tua história da Cidália deixou-me...não sei como, fiquei ligado. por razões próprias que têm a ver com a animação sócio cultural, enternece-me, comove-me, com uma ponta de tristeza porque as coisas não precisavam de ser assim, histórias como a que aqui deixaste, em que no meiod a maior adversidade as pessoas lutam pelo seu quinhão de felicidade. conheci casas como aquelas onde a Cidália foi buscar os filhos. obrigado

Anónimo disse...

Porra. Sabes que tenho saudades destes "piolhos"?

Já te estive para escrever um mail, estive para ligar ainda esta semana, mas nada disso fiz, como é óbvio. Tenho andado para além das minhas forças e muiiiiito pouco tempo online, o que me deixa fula comigo mesma e com quem me rodeia.

Deixo-te um grande beijo e se calhar... daqui a uns minutos ligo-te.


m.