Fevereiro 1992 – Sábado à noite. Maria segue atrás do médico pelo corredor da maternidade. Grávida e infeliz. As lágrimas correm-lhe indiscretas, pelo rosto. O médico detém-se a uma porta e convida-a com um gesto, a entrar primeiro que ele. Pede-lhe que se sente. Diz-lhe que não deve estar assim. Não é bom para o bebé. “Vamos ver o que se passa”, acresceta. Sétima ecografia. Durante meia-hora, nenhum dos dois, profere uma única palavra. Maria recorda as últimas horas. Tinha sabido que o seu bebé não estava bem, na tarde anterior. Problemas na coração, nos ossos da cabeça, desses sabia. Mas havia mais. Decidiu não seguir as indicações da médica. Teria que esperar mais uma semana para conhecer melhor a situação. Deu por isso entrada pelas Urgências, daquela que considerava a melhor maternidade, mesmo sem ter acesso legitimo a ela, mesmo sem a sua situação ser considerada urgente, e em boa hora o fez, pensava. Tinha sido difícil, mas tinha conseguido convencer os médicos a fazer nova ecografia. Ninguém sabia que ali estava. Não tinha dito nada a ninguém. Foi sozinha. Um dos médicos melhor credenciados, um dos mais avançados aparelhos… e ali estava ela, à espera de respostas. Quando o médico terminou, confirmam-se todas as suspeitas. Era impossível, com tantas malformações, um feto sobreviver fora do útero. Nem compreende como tinha chegado a avançado estado de gestação. Era inacreditável, com tanta ecografia feita, só agora se detectarem estas anomalias. Era inacreditável. Maria ia perder o bebé. Marcou-se nova ecografia, desta vez com um cardiologista. Mais uma cordocentese para recolha de sangue do bebé. Tudo para daí a 2 dias. Encaminhamento para Consulta de Genética e Centro de Diagnóstico Pré-Natal. Aconselhamento de pedido de interrupção voluntária de gravidez. O feto está em sofrimento. O coração não vai aguentar muito mais tempo. Maria seria poupada ao desgaste dos 2 últimos meses de gravidez. Nada lhe parecia fazer sentido.
Ainda hoje, não compreende. A gravidez tinha começado mal, de facto. Foi seguida em Alto Risco, até aos 3 meses. Se tinha conseguido “segurar” o bebé até essa altura, estaria livre de perigo, a partir daí. Foram despistadas as doenças de família. Recorda novamente a investigação que tinha feito sobre a doença da sua avó Emília. Tinha também conversado com o médico da sua mãe. Nada de mal lhe podia acontecer, a doença não era sequer hereditária, apenas de tendência familiar, como quase todas. Por isso não chegou a fazer Amniocentese. Cinco ecografias, feitas pela mesma médica, quase todas feitas a pedido de Maria, ao seu médico. Concordou sempre. Carinhoso, cuidadoso, tentando tranquiliza-la.
Tinha perdido o bebé, sim. Sara, se chamaria se vivesse. Sara, ficou para sempre. Lembra-se de não saber do que sentia falta, após a interrupção da gravidez, se da barriga, se do bebé. Se não tinha barriga, devia ter bebé. Se não tinha bebé, ainda devia ter barriga. Lembra-se da conversa que teve com o médico a quem pediu alta para poder estar presente aquando do funeral. Como ele tentou anima-la. Uma dor profunda que se arrastou durante dois meses e foi atenuando muito lentamente, após essa data. Nessa altura, já Maria tinha na sua posse, o Relatório de Genética, com descrição de Exame Necrópsico: …”encefalocelo occipital, fenda palatina bilateral, malformação dos pavilhões auriculares, malformação dos membros inferiores, defeito de septo aurículo-ventricular incompleto, rotação incompleta do intestino, múltiplos baços acessórios, rim direito pequeno, vesícula biliar parcial incluída no parênquima hepático e localizada à esquerda do ligamento redondo.
Arrepia-se. Fecha os olhos demoradamente. Ainda custa a crer. Ao final de doze anos, lembra-se como se fosse ontem, da reacção da médica que lhe fez as cinco ecografias, quando lhe deu uma fotocópia do Relatório de Genética. Antes de o receber, escusava-se com desculpas e lamentos. “Às vezes é difícil ver as malformações”, disse. Maria, estendeu-lhe a folha de papel. Passados breves segundos, a médica escondeu a cara entre as mãos e não a voltou a descobrir. “Oxalá, não se volte a enganar desta maneira”, não se lembra se disse, se pensou apenas, antes de sair do consultório. A médica metia dó. Provavelmente nem terá dito nada, por isso mesmo.
Afinal, agora há distância de tantos anos, este erro parece-lhe mais esbatido. A médica cometeu um erro sim, punível até com pena de suspensão, não fosse ter sido amnistiada pela Inspecção-Geral de Saúde, sabe disso. Contudo, a punição máxima, teve-a no momento de confronto com Maria e com o relatório que a mesma lhe colocou nas mãos. Mas não foi responsável pelas anomalias da Sara. Estas definiram-se no momento da concepção. Algo correu mal. Nunca se saberá o quê.
Guarda tudo. Triste mas tranquila. Ultimamente, tem dado à própria vida, um valor diferente do que dava. Efémero, por isso mais valorizável. E hoje, nesse preciso momento, parece-lhe tão fugaz, qualquer umas das vidas que percorreu, folheando papéis, recordando situações de tristeza, de dor, de termo. Deveria talvez, começar por acreditar no destino. Mas, não. Está decidida a continuar a percorrer um caminho de escolha livre, sem conformismo de especial inibição. Não se pode ficar à espera de coisa nenhuma, sob pena de não se viver na maior plenitude possível.
4 comentários:
Calculo como foi difícil para Maria, perder a sua bébé...a sua Sara.Como mãe que sou, acredito que essa é, de certeza, a maior de todas as dores.
Beijinhos, minha amiga!
I Peoples
Ou o Blogger também endoideceu ou foram os meus upgrades que bloquearam isto tudo...
Ontem tinha passado por aqui e retive esta frase:
"Não se pode ficar à espera de coisa nenhuma, sob pena de não se viver na maior plenitude possível"
Tão verdadeira... :-)
Beijo
(...)
Este teu final de texto funciona como um bálsamo ao que acabei de ler (li os 3 seguidos e estou assim ...)
Quem sabe... o exteriorizar assim a dor é um começo para atingir essa plenitude.
Um abraço bem apertado.
Andaste perto, sim. Porque hoje és mãe e porque a tua memória não te trai. Beijinho, linda.
É, Inconformada... tenho andado a arrumar umas coisas, umas melhores que outras. E tu, já te despachas-te com os upgrades? Beijinho.
Os 3 de seguida, Riacho? Ah!... grande mulher, sem dúvida. Pois... dizer tudo como os malucos... Já te tinha dito... funciona mesmo. Beijinho.
Enviar um comentário