sábado, agosto 28, 2004

Regresso ao passado II


Lembra-se de subir as escadas, devagar, sem pressa de chegar. Contudo, ansiosa, expectante. Conhece aquele Serviço de Neurologia, como a palma das mãos. A sua mãe esteve lá internada, durante meses, pouco tempo antes desse dia. Na mesma enfermaria onde tinha estado a sua avó Emília, 22 anos antes. Esta coincidência é dolorosa, como o conceito de destino, em que nunca quis acreditar. Sem fuga possível. Angustiante. Redutor. Sabe a que sala se deve dirigir, conforme conhece todos os caminhos que a ela vão dar. Os de acesso público e ou outros, em que circula sem autorização. Nunca ninguém lhe disse nada. Nunca ninguém lhe chamou a atenção. Percorre aqueles corredores, usa qualquer um dos elevadores, entra em qualquer sala, como se da casa dela se tratasse. Mas, nesse dia, foi as escadas de acesso público que subiu. Como qualquer pessoa. Como qualquer visita. Ia à procura da médica de que lhe tinha falado no dia anterior, a funcionária da secretaria. Sabia que estava à sua espera. Tinha combinado com a enfermeira. E a médica já sabia do que se tratava. Entrou e fez-se anunciar. Surgir a médica. Já a tinha visto, sim. Mas não sabia que era ela. Cabelos grisalhos. Óculos na ponte do nariz. Ainda de bata branca. Estava de saída, Maria sabia. Simpática e acessível, convidou-a a sentar-se e começaram a conversar. “Não. Paramiloidose, não era. Seguramente”, disse a Maria. Explicou-lhe que essa doença, compromete também os membros superiores. “E ela tinha umas mãos de ouro”, acrescentou. Bordava, fazia crochet, tricot, até à máquina escrevia. Não. Paramiloidose, não. Insistia, convictamente. Tinha tido tempo suficiente para se manifestar nas mãos e nunca se manifestou. O que tinha sido, não sabia. “Nunca se soube”, repetia. Maria estava tranquila. Esboçava até um sorriso nos lábios, enquanto ouvia a médica. Contava-lhe histórias, que revelavam uma avó bem disposta e alegre. Faceta que desconhecia. Sempre lhe contaram histórias tristes. Histórias sob um cenário de guerra, na infância da mãe e do tio. Episódios ocorridos já na fase da doença, causadores de grande sofrimento para quem os contava. Conhecia agora, uma avó diferente. Estimada por todos. Forte e lutadora. “Sempre bem disposta. Nunca se deixava ir abaixo.”, dizia a médica. Maria deliciava-se. Curiosa, ia fazendo perguntas. A médica não revelava pressa. Assim estiveram algum tempo, findo o qual, juntas, desceram as escadas. Despediram-se ao fundo das mesmas. Maria abandonou o serviço, seguiu o seu caminho. Paramiloidose, não era. Poderia aceitar esta observação como certa. Aceitou-a mesmo.

Ia passando uma a uma, cada folha. Deteve-se numas fotocópias propositadamente agrupadas com um clip. Separou-as. Palavras sublinhadas a marcador de cor. Correu os olhos sobre elas. Periarterite Nodosa (Doença de Kussmaul) – Rara e potencialmente fatal inflamação das pequenas artérias. Resulta frequentemente em trombose arterial e morte de tecidos circundantes. A causa da Periarterite Nodosa é desconhecida. Doença de tendência familiar, verifica-se geralmente em pessoas com idade entre os 25 e os 50 anos, e é mais vulgar nos homens que nas mulheres, leu. Continuou. Hereditariedade. Mais definições da doença. Lembra-se de ter passado algumas tardes em bibliotecas, recolhendo estas definições. Pousou as folhas e olhou em frente, retrocedendo no tempo.

Fevereiro 1982 – Ouvia o médico da sua mãe. Usava termos complexos de difícil compreensão referindo-se ao diagnóstico da doença. No rosto de Maria, o desespero. Era mau, aquilo que ouvia. Não estava ali mais ninguém. Tinha que compreender tudo para depois conseguir explicar. À mãe, internada na enfermaria do fundo. Ao pai que não teve coragem de a acompanhar, por adivinhar as más notícias. Aos irmãos, ainda mais jovens. O médico ia dulcificando a voz, à medida que se apercebia do estado de espírito dela, a ceder, vertiginosamente. Queria ser forte e não era capaz. O médico explicava-lhe o que ia acontecer. Como se teriam que preparar. Por fim, convidou-a para se sentar. Deram 3 ou 4 passos até ao banco corrido, mais próximo, e sentaram-se. Maria perguntou quanto tempo faltava até ao fim. 6 meses, 2 anos. Não sabia. Tudo dependia de muita coisa. Tinha que ajudar a mãe. Tinha que ajudar o pai. Tinha que ser forte.

“Tinha que ser forte”. Entoava-lhe a voz do médico. Maria voltou a pegar nas folhas, arrumando-as na pasta. Passaram 16 anos desde esse dia, até ao dia em que a mãe morreu. 16 angustiantes anos, em que todos puderam ver a mãe a definhar. Uma morte gota a gota, cujo fim, foi um respirar fundo após uma dor insuportável. Marcante na vida de todos. Vagarosamente, guardou a pasta na caixa. Pegou na outra. Vacilou. Deveria guardá-la sem a abrir, sabe disso. Mas não. Tinha mesmo que ver. Fotografias dela própria. Grávida e sorridente. Feliz. Correm-lhe memórias em turbilhão, fixando-se na última.

Fevereiro 1992 – Sexta-Feira, final de tarde. Maria entra no consultório. Grávida e feliz. Vai fazer mais uma egógrafia obstétrica. Está ansiosa. Quer saber se está tudo bem, se é menina ou menino. Tinha feito uma, 15 dias atrás. No dia a seguir, marcou esta, para outra clínica, com outra médica. Tinha que ter a certeza que estava tudo bem. Fazia-se acompanhar pelo pai do seu bebé. A certa altura, apercebeu-se que o exame estava a demorar mais do que o habitual. A médica tinha parado de conversar. O silêncio ganhava espaço. Maria percebeu que algo não estava bem. Perguntou sem rodeios. A médica respondeu da mesma forma. Alguma coisa no coração do bebé, não estava bem. “Como… não estava bem?”. A médica não se fazia explicar. “Não era só no coração, havia mais coisas, também”, adiantava. Mais coisas… que coisas? Como era possível? Aquela era a sexta ecografia, em 7 meses de gravidez. Não tinha feito uma, nem duas, nem três. Era a sexta ecografia. Como é que podiam haver coisas, que não estavam bem? Que coisas? A médica, insegura, ia falando aos sulcos e em baixo tom. Tentava em vão, transmitir alguma tranquilidade, enquanto Maria se ia calando. Ficou ali, como uma intrusa a ouvir a conversa da médica e do pai do seu bebé. A gravidez tinha começado mal, dizia ele. Com duas ameaças de aborto espontâneo. Tinha feito repouso absoluto até ao terceiro mês. Tinha investigado doenças familiares exaustivamente, nomeadamente as da sua avó Emília e da sua mãe, tendo-se escusado uma Amniócentese, por se ter feito despiste de doença grave, hereditária. “Antes tivesse sido feita” observava a médica. Não se lembrava como tinha saído dali. Não se lembrava de mais nada, senão das “coisas que não estavam bem”. Que coisas? Tinha tido tanto cuidado. Tinha investigado tudo. Do que se teria esquecido? O que teria corrido mal?

12 anos volvidos, desde esse dia. Maria guarda as fotografias e acende um cigarro. Fecha a pasta e guarda tudo na caixa de arquivo. Para quê lembrar isto agora? Não. Volta a tirar tudo, tem que ver o resto.

(continua)

3 comentários:

inconformada disse...

(...)
Beijo

Anónimo disse...

Absorvi bem essa 2 parte, sabes? Vivia-a mesmo como se estivesse na pele de Maria.
Podia ser só ficção mas, infelizmente, há tantas Marias que já sofreram dramas parecidos!...
I Peoples

Aq disse...

Beijinho ás duas :)