Colocou a caixa de arquivo morto sobre o móvel. Não a abriu de imediato. O que estaria lá dentro? Já não se lembrava. Devagarinho levantou a tampa. Pastas. Retirou-as uma a uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. Fixou-se nas duas últimas. “Avó Emília + Mamã”, leu na primeira. “Sara”, estava escrito na segunda. Ambas as etiquetas escritas com a sua letra. A tristeza invadiu-a, devagarinho. Antes não tivesse aberto a caixa. Inevitavelmente, teria que rever aqueles papéis. Regressar ao passado. Na primeira pasta, uma foto amarelada. Um grupo de pessoas. Adultos e crianças. Ao centro, uma senhora sentada numa cadeira de rodas. A avó Emília. À sua esquerda, a mãe, ainda mulher jovem, com o seu sobrinho ao colo. Hoje um homem de 42 anos. Tios, tias, primos… gente que já morreu. Registos de infância, de homens e mulheres, com quem convive hoje.
Novembro 1991 – Maria aguarda a sua vez para ser atendida. Está ansiosa. Impaciente. Mas reserva-se. Quando chega à sua vez, a funcionária da secretaria do hospital, já sabe ao que vai. Com simpatia, manda-a aguardar e vira costas. Volta rapidamente com uma folha de papel azul, e comenta que Maria vai ficar desiludida com o conteúdo do documento. Maria não presta atenção à voz da senhora. Não ouve, sequer. Percorre com os seus olhos ávidos, as palavras escritas no documento. Encontra. "Diagnóstico: Mielite Transversa Paraplégica”. Sente-se aliviada por não ter lido “Paramiloidose” (vulgo Doença dos Pezinhos). No mesmo instante, é assaltada pela dúvida e questiona a funcionária, se não quererá dizer a mesma coisa. Não. Respondeu a senhora. E adianta que Mielite Transversa Paraplégica, é uma consequência, um estado, originado por uma doença, quer dizer apenas que o doente é paralítico, não especificando a causa. Maria esboça a desolação no rosto. Afinal, não tinha obtido resposta. No dia anterior, tinha pedido por escrito, depois de explicar as razões, àquela funcionária, uma Certidão com Diagnóstico de Doença, relativa à sua avó Emília. Com urgência. Era necessário despistar Paramiloidose. E afinal, não há diagnóstico. A funcionária comove-se com a desilusão de Maria. Explica-lhe que naquele tempo era diferente. A medicina não estava tão avançada. Muitas vezes, não se sabia de que doenças padeciam as pessoas. Maria não diz palavra. Não levanta os olhos da folha de papel azul que tem nas mãos. Faz-se silêncio. A funcionária, pede-lhe para aguardar e sai do gabinete. Desta vez, demora-se. Quando volta, traz consigo mais papeis. Folhas compridas e estreitas, amareladas pelo tempo. Com um ar comprometido, mostra-lhas, poisando-as sobre o balcão. Maria observa as folhas. É o registo do último internamento, diz a funcionária. Adianta que vai fazer fotocópias e lhas dá. Quê as leve. Que as dê a ler ao médico. Oxalá, possam ajudar. Era o máximo que podia fazer. Maria percebe que a senhora não está autorizada a fazê-lo. Que não está a cumprir regras. Mas aceita. Concorda e agradece insistentemente. A funcionária fala-lhe de uma médica, desse tempo, ainda ao serviço. Que a procurasse, que tentasse falar com ela, ver se se lembraria de alguma coisa.
Passados 13 anos, tem novamente estas folhas nas mãos. Não lhe serviram de nada. Recorda com carinho a atitude da funcionária. E volta a percorrer com os olhos, os vários tipos de letras manuscritas nas folhas. Seguramente, escritas por várias pessoas. Algumas perfeitamente ilegíveis. O registo, dia a dia do último internamento da sua avó. Nunca a conheceu. Estas folhas, nas suas mãos, resultam no momento em que mais perto esteve dela. Desde Janeiro de 1964, a Julho do mesmo ano. “Alta a pedido da família”, lê. Para ir morrer em casa, sabia. Tinha-lhe contado a sua mãe. Morreu 2 dias depois de sair do hospital, confirma a Certidão de Óbito Os medicamentos que tomou, análises e exames que fez e seus resultados, registos de temperatura. Transfusões de sangue e sua quantidade. Um visto, em "alimentação". Sem visto, se não comeu. Três ou quatro pontos de interrogação. Os médicos andavam à nora, pensou. “Foi a ureia que a matou”, entoa a voz do tio, na sua memória. Foi a ureia que a matou. “Ureia no sangue”, lê agora. Um visto, à frente da frase. O tio tinha razão. Foi a ureia que deu o golpe final. Doze anos, num hospital, quase ininterruptamente. Os últimos da sua vida. Um dia, acordou de manhã e não andava. As pernas não obedeciam. Nunca mais obedeceram. Morreu com 42 anos. Uma mulher bela, na sua juventude. Rosto de mulher fatal, registaram as muitas fotos que lhe fizeram. Lábios rubros e brilhantes, cuidadosamente delineados e pintados. Poses de estrela, com luz posterior a esbater os cabelos negros, compridos e ondulados. Unhas longas cuidadosamente tratadas, em mãos que ora apoiavam o queixo, ora soltavam o cabelo, ora se cruzavam sobre os joelhos dobrados. Tantas fotografias conhece Maria, da sua avó. Quase todas de posse da sua mãe. Mas viu outras, que lhe mostraram orgulhosamente, o seu tio e a sua tia-avó. Linda de morrer, em todas elas. Digna de ser mostrada, de facto. Generosa, segundo consta. Amiga de ajudar o próximo. Maria, sempre teve pena de não a conhecer.
(continua)
3 comentários:
(...)
fiquei com a respiração suspensa
Bem, tudo isso é ficção? És demais!
Se eu nao te conhecesse pensava que trabalhavas no ramo da saúde ou, então, que eras uma dessas hopocondríacas ir(remediáveis). Ah...ah !
Vou lêr a segunda parte.
Bejinhos
I Peoples
Respira fundo, Inconformada. É dose grande. Deu-me para isto... Beijinho.
Eu sou o avesso dos hipocondríados. Convenço-me que nunca tenho doença nenhuma, por isso é que só vou ao médico quando me doi alguma coisa, que é para ver se não me arranjam doença nenhuma, eheh. Pois é, linda... a começar assim (o texto) não ias lá de maneira nenhuma. Beijinho grande.
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