Voltou para dentro. Fechou a porta atrás de si. Lá fora a poucos metros de distância, afastava-se o carro onde seguiam os seus filhos pequenos. Iam passar o fim-de-semana com o pai. O primeiro. Estavam tristes, sem entusiasmo. Afinal era a primeira vez que estariam separados mais do que 48 horas. Despediram-se até poder. Até deixarem de se ver. Até a estrada acabar.
Tentava conter as lágrimas. Ser razoável. Hesitante, vacilava entre a razoabilidade e a entrega total à angústia da separação. Acabou por desmoronar. Afinal, ninguém a vi-a. Caramba!... podia chorar à vontade. Soltaram-se as lágrimas, enquanto ligava o hi-fi. Sonhos, de Caetano Veloso. Era o cd que estava na gaveta do hi-fi. Talvez a música a conseguisse distrair. Ou talvez fosse o elemento que faltava para completar o cenário. Entrega total à doce tristeza.
Não. Mudou de ideias. Esta música não. Trocou o cd. Nem chegou a ouvir o segundo. Mudou de ideias novamente. Desligou o hi-fi e ligou o pc. Porto seguro. Atracou. Chorou. Escreveu. Desta vez, foi rápido. Secaram as lágrimas num instante.
Agora sim. Eat the rich, Aerosmith. 30 db. Fechou as janelas. Decide que vai sair. Tem que se despachar até à 8ª música, Cryin. Esta já não quer ouvir. Provoca-lhe sempre a sensação de saudade de algo que nunca teve. Estranhíssima. Ora doce, ora desconfortável. Mais sensações de complexa percepção, não.
Banho. É isso. Um duche alivia-a sempre. O toque da água morna a correr alegremente pela sua pele. O perfume do gel de banho. Do shampoo. O barulho da água a cair no chão. Não pensa em nada. Despacha-se apenas.
Trata de si. Hoje é dela que vai tratar. Está disponível. Olha-se ao espelho. Agrada-lhe aquele contraste da pele morena com o imenso branco da roupa interior. Hoje é branco, sim. T-shirt branca. Calças de ganga. Chinelos a desnudar os pés. Põe o melhor perfume. Ajeita o cabelo. Hoje fica solto.
Telemóvel. Carteira. Tabaco. Tudo para dentro da mochila. Pega nela para sair. Está leve. Falta-lhe os boletins de saúde dos miúdos, as duas garrafinhas de água (têm sempre sede na rua) a chucha e a fralda da filha mais nova. Parece-lhe agora, que a mochila tem o peso ideal. Dirige-se à porta. Ah!... a música. Tem que desligar o hi-fi. Volta atrás no preciso momento em que se faz ouvir Cryin. Mas não desliga. Ouve-a até ao fim.
Numa paz de espírito imensa, desliga o som e sai de casa. Uma festinha ao cão antes de entrar no carro. Marcha-atrás. Desce pelo mesmo sítio que os filhos desceram à pouco. Está segura. Repara nas mãos pequenas e morenas sobre o volante do carro. Nos dois anéis de prata que usa no anelar esquerdo. Agrada-lhe. Gosta mesmo de se ver com aquele tom de pele. Vai segura. No pensamento, os seus filhos, o porto de abrigo. Primeira paragem. Multibanco. Carregar o telemóvel. Minimiza a distância até aos filhos. Depois… logo se vê. Mas o dia vai correr bem. Tem a certeza disso.
…
Pois… de facto, hoje não me apeteceu escrever na primeira pessoa.
7 comentários:
Mas eu li na primeira pessoa. E gostei da crónica diária :)
Pois... leste tu e lerem todos,eheh. Continuo a falar muito de mim. Há-de passar... com o tempo.
E eu gostei particularmente da falta que te faz o peso da tua mala. Como se também ele tivesse sido "roubado" pelo primeiro fim de semana. E, sabes ? Ás vezes falar de nós é como esse tempinho que dedicaste ao teu duche, é como "tratar de nós". Também precisamos... :-) Beijo
:-)
Fizeste-me lembrar Camões e a sua Leonor... a caminhar descalça pela verdura, fermosa e não segura (sim, 'não segura').
Tentavas incutir em ti essa própria segurança com o pensamento insistente de que o eras :-)
Assim o serás.
Um beijinho.
Pois é, Inconformada. Ando a ver se me habituo a tratar de mim, outra vez. Quando deixar de escrever na primeira pessoa... é porque já me habituei. Beijinho.
É curiosa essa tua imagem do Camões e da Leonor, Riacho. Será que a Leonar sabia que Camões a observava, que a amava? Parece-te então que vou no bom caminho? Descalça, formosa e cada vez, mais segura? Eu cá... acho que tens razão. Beijinho.
Sim, Orelhas Quentes. Compreendeste a mensagem. Andar para a frente, é isso. Mais segura... menos segura... pelo caminho há sempre qualquer coisa que nos faz arrebitar. Beijinho.
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