Maria dos Anjos foi ao baile.
Começou a pensar no assunto com 15 dias de antecedência, por insistência da mãe, “que tem que se divertir, conviver com raparigas e rapazes da sua idade, que a vida não é só casa-trabalho, trabalho-casa” enfim, preocupações de mãe já com muitos anos subtraídos à vida que não vê a sua única filha, quase quarentona contudo, bonita, inteligente, com curso superior, um bom emprego, casa e carro próprios, a promover o encontro com um homem bom, amigo dela e da família.
Maria dos Anjos até gosta de dançar. Consolidou esse gosto ainda menina, no rancho lá da aldeia e nos frequentes bailes que se realizavam, nos quais participou até quase à idade adulta. Conhecia bem o ambiente. O salão grande com chão de madeira, encerado a preceito para a festa. Alinhadas junto às paredes, as cadeiras disputadas pelas alcoviteiras que vazam a bexiga no fim do baile com medo de perderem a cadeira, se o fizerem antes. No palco, o animador da festa que canta e toca quando o quadro da electricidade colabora e conta umas piadas forçadas com a voz mais alta que consegue fazer, quando o mesmo quadro vai abaixo porque a mulher do bar se esqueceu que não podia ligar a torradeira e o microondas ao mesmo tempo. As crianças a correrem por um caminho vazio, aos encontrões leves com os dançarinos, como uma bola das máquinas de pinball antes de descer até ao fim. As mães a ralharem com os filhos pequenos que “não senhor, não há mais dinheiro para guloseimas” e com as filhas que descobriram interesse nos rapazes que “não senhor, não sais daqui para lado nenhum”. Os rapazes, homens novos, quietos a um canto a observar à distância as raparigas namoradeiras, esperando o melhor momento para num salto, tentar a sua sorte. As mulheres a dançarem com outras mulheres, porque os maridos que em tempos faziam o jeito, agora já se lembraram que nunca gostaram de dançar.
Só no próprio dia, Maria dos Anjos decidiu que vai ao baile. Decidiu que vai mascarada, porque só as alcoviteiras é que não se mascaram e ela não quer ser confundida com uma alcoviteira. Decidiu que vai mascarada de hippie porque não providenciou atempadamente uma fantasia, porque o cabelo dela se presta a isso, porque guardou umas calças de ganga que se rasgaram no joelho, porque tem algures uns óculos de sol redondos e porque sim.
À noite, já muito tarde, para não ter que lá estar tanto tempo, Maria dos Anjos entrou pela porta do salão de baile, mascarada de hippie, a par com a sua mãe. Providenciou uma cadeira de alcoviteira para a mãe, junto a outra alcoviteira vizinha. “Foi uma sorte” pensou, não ter que disputar a cadeira. Acolheu-se depois, no grupo das meninas que já não são muito pequeninas, mas ainda não vêm interesse nos meninos, quase todas suas discípulas na catequese que ensinou até há pouco tempo. Seria aquele o lugar mais seguro, para não ser alvo dos comentários das alcoviteiras, nem das investidas dos rapazes que esperam quietos a um canto antes de dar um salto. Animadas, dançaram de mãos dadas e alinharam nos comboios que volta e meia se fazem pelo salão. Correspondeu às piadas que lhe dirigiam as pessoas conhecidas como se estivesse muito à vontade, mas contou-os a todos pelos dedos, os rapazes quietos a um canto à espera de dar um salto e as alcoviteiras de bexiga cheia sentadas nas cadeiras junto às paredes.
Quando pensava que já não havia perigo porque as alcoviteiras estavam reduzidas a uma dezena e os rapazes quietos a um canto não eram mais do que três, atreveu-se a obedecer às pernas e sentou-se numa das dezenas de cadeiras agora, vazias. Em menos de nada, um dos rapazes que estavam quietos a um canto aproximou-se e as alcoviteiras espetaram-lhes os olhos em cima. Queria dançar. O rapaz queria dançar. A dois passos dela, girou o indicador apontado para baixo, com o sorriso mais tímido que alguma vez ela tinha visto numa pessoa adulta. Numa fracção de segundos que lhe pareceu uma eternidade teve que decidir se sim, se voltava a dançar com um rapaz agarrado à sua cintura, ou se não, não o queria fazer debaixo do olhar das alcoviteiras. Decidiu que não.
Maria dos Anjos nunca mais se esqueceu da expressão que os músculos daquele rapaz lhe desenharam no rosto. Queria que ele tivesse sabido que só não tinha dançado com ele por causa das alcoviteiras. E que sim, tinha saudades de sentir a mão de um homem na sua, o seu corpo seguro ao dele, guiado num rodopio equilibrado de passos de dança. Já lá vão 2 anos.
Hoje, é dia de baile de máscaras, outra vez. A sua mãe insiste em ir. Maria dos Anjos já decidiu que vai. Mascarada de alcoviteira. Leva duas cadeiras de casa.
Começou a pensar no assunto com 15 dias de antecedência, por insistência da mãe, “que tem que se divertir, conviver com raparigas e rapazes da sua idade, que a vida não é só casa-trabalho, trabalho-casa” enfim, preocupações de mãe já com muitos anos subtraídos à vida que não vê a sua única filha, quase quarentona contudo, bonita, inteligente, com curso superior, um bom emprego, casa e carro próprios, a promover o encontro com um homem bom, amigo dela e da família.
Maria dos Anjos até gosta de dançar. Consolidou esse gosto ainda menina, no rancho lá da aldeia e nos frequentes bailes que se realizavam, nos quais participou até quase à idade adulta. Conhecia bem o ambiente. O salão grande com chão de madeira, encerado a preceito para a festa. Alinhadas junto às paredes, as cadeiras disputadas pelas alcoviteiras que vazam a bexiga no fim do baile com medo de perderem a cadeira, se o fizerem antes. No palco, o animador da festa que canta e toca quando o quadro da electricidade colabora e conta umas piadas forçadas com a voz mais alta que consegue fazer, quando o mesmo quadro vai abaixo porque a mulher do bar se esqueceu que não podia ligar a torradeira e o microondas ao mesmo tempo. As crianças a correrem por um caminho vazio, aos encontrões leves com os dançarinos, como uma bola das máquinas de pinball antes de descer até ao fim. As mães a ralharem com os filhos pequenos que “não senhor, não há mais dinheiro para guloseimas” e com as filhas que descobriram interesse nos rapazes que “não senhor, não sais daqui para lado nenhum”. Os rapazes, homens novos, quietos a um canto a observar à distância as raparigas namoradeiras, esperando o melhor momento para num salto, tentar a sua sorte. As mulheres a dançarem com outras mulheres, porque os maridos que em tempos faziam o jeito, agora já se lembraram que nunca gostaram de dançar.
Só no próprio dia, Maria dos Anjos decidiu que vai ao baile. Decidiu que vai mascarada, porque só as alcoviteiras é que não se mascaram e ela não quer ser confundida com uma alcoviteira. Decidiu que vai mascarada de hippie porque não providenciou atempadamente uma fantasia, porque o cabelo dela se presta a isso, porque guardou umas calças de ganga que se rasgaram no joelho, porque tem algures uns óculos de sol redondos e porque sim.
À noite, já muito tarde, para não ter que lá estar tanto tempo, Maria dos Anjos entrou pela porta do salão de baile, mascarada de hippie, a par com a sua mãe. Providenciou uma cadeira de alcoviteira para a mãe, junto a outra alcoviteira vizinha. “Foi uma sorte” pensou, não ter que disputar a cadeira. Acolheu-se depois, no grupo das meninas que já não são muito pequeninas, mas ainda não vêm interesse nos meninos, quase todas suas discípulas na catequese que ensinou até há pouco tempo. Seria aquele o lugar mais seguro, para não ser alvo dos comentários das alcoviteiras, nem das investidas dos rapazes que esperam quietos a um canto antes de dar um salto. Animadas, dançaram de mãos dadas e alinharam nos comboios que volta e meia se fazem pelo salão. Correspondeu às piadas que lhe dirigiam as pessoas conhecidas como se estivesse muito à vontade, mas contou-os a todos pelos dedos, os rapazes quietos a um canto à espera de dar um salto e as alcoviteiras de bexiga cheia sentadas nas cadeiras junto às paredes.
Quando pensava que já não havia perigo porque as alcoviteiras estavam reduzidas a uma dezena e os rapazes quietos a um canto não eram mais do que três, atreveu-se a obedecer às pernas e sentou-se numa das dezenas de cadeiras agora, vazias. Em menos de nada, um dos rapazes que estavam quietos a um canto aproximou-se e as alcoviteiras espetaram-lhes os olhos em cima. Queria dançar. O rapaz queria dançar. A dois passos dela, girou o indicador apontado para baixo, com o sorriso mais tímido que alguma vez ela tinha visto numa pessoa adulta. Numa fracção de segundos que lhe pareceu uma eternidade teve que decidir se sim, se voltava a dançar com um rapaz agarrado à sua cintura, ou se não, não o queria fazer debaixo do olhar das alcoviteiras. Decidiu que não.
Maria dos Anjos nunca mais se esqueceu da expressão que os músculos daquele rapaz lhe desenharam no rosto. Queria que ele tivesse sabido que só não tinha dançado com ele por causa das alcoviteiras. E que sim, tinha saudades de sentir a mão de um homem na sua, o seu corpo seguro ao dele, guiado num rodopio equilibrado de passos de dança. Já lá vão 2 anos.
Hoje, é dia de baile de máscaras, outra vez. A sua mãe insiste em ir. Maria dos Anjos já decidiu que vai. Mascarada de alcoviteira. Leva duas cadeiras de casa.
5 comentários:
Ora aqui está um dos tais posts que como diria um certo amigo levou à gaveta onde se encontram...
Beijo
Fiz-te correr a memória, Manuel? :)
Beijo
Maria dos Anjos merecia outro destino que essas duas cadeiras (e a outra, a corda).
O que eu gosto destas tuas historias... :-)
Beijo, beijo
A outra a corda, definitivamente ;)
Beijo, Riacho
Também gosto de as escrever :) Obrigada, linda. Beijinho grande.
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