sábado, dezembro 18, 2004

A viagem


As minhas pernas andavam para a frente, apesar de não saber o destino. Sentia-me cansada, pesada. Era de noite, acho eu. Estava escuro, isso eu sei. Não sei há quanto tempo as minhas pernas andavam para a frente. Meses? Anos? Há muito tempo, seguramente. Volta e meia, cruzava-me com gente. Gente que não conhecia. Com quem não falava. Eu sorria. Eles também… alguns, alguns sorriam. E as minhas pernas continuavam a andar para a frente.

Levei a mão ao cabelo. Estava áspero. Já não me lembrava do meu aspecto. Não havia espelhos. Também, não era importante. Relevante, era que as minhas pernas andavam… para a frente. Estava frio. Estava escuro. E eu, já nem sei se queria chegar. Às vezes apetecia-me desistir, de tão cansada me sentia. Mas as minhas pernas nunca paravam. Não me conseguia sentar, deitar, descansar. Estava sempre de pé e as minhas pernas andavam sempre para a frente. E, no caminho que percorriam, nada me chamava a atenção, nada me despertava o interesse.

Até que vi claridade, ao longe, de um dos lados do meu caminho. Senti os olhos a espelhar. Senti o corpo a espertar. Senti as pernas. Eram minhas de novo e começavam a andar para onde eu queria. Para a claridade. Acho que comecei mesmo a correr. Acho que comecei mesmo a acenar às pessoas com quem me cruzava. Paravam, olhavam para mim, sem perceber o que se passava. Acho que me cruzei mesmo, com um espelho. Vi-me de relance. Não estava assim tão mal, pensei. E corri, corri, corri… em cima das minhas pernas, finalmente para onde eu queria.

Abrandei o passo, porque ouvi qualquer coisa. Eram sinos. Eram sinos, ao longe. Gostei. Sorri. Continuei, trôpega mas decidida. Cruzava-me com gente que acenava, sorria… para mim. Cada vez, mais gente. Cada vez, mais acenos. Cada vez, mais sorrisos. Cada vez, mais luz. Cada vez, mais vontade de chegar.

Deparei-me então com um portão imenso, escuro, velho e fechado. Tentava abri-lo em vão. Desesperava. Sentei-me encostada a ele, esmorecida e escondi o rosto sobre os joelhos. Não sei quanto tempo fiquei assim. Mas voltei a ouvi-los, aos sinos e levantei a cabeça. Levantei o corpo. Afastei-me do portão e olhei por cima dele. Luz. Emocionei-me. Senti o corpo arrepiar. E os meus olhos foram capazes de chorar. Sem esconder as lágrimas, pedi ajuda para abrir o portão, que ninguém tinha visto antes. Juntaram-se quatro ou cinco pessoas e o portão abriu. Eu entrei devagarinho, as pessoas ficaram para trás, acenando, sorrindo, desejando sorte.

Fui andando devagarinho, debaixo daquele sol morno, olhando para um lado, olhando para o outro. Vi a igreja branca. Vi finalmente os sinos. Em frente à igreja, havia uma casa velha. Entrei. Subi as escadas. Ouvi de novo, os sinos, agora cúmplices. Num dos quartos da casa, estavam três camas. Aproximei-me delas. Comovi-me tanto que as minhas pernas fraquejaram. Sentei-me na bordinha da primeira cama e observei-os. Dormiam em paz. Quentinhos. Os meus filhos. Por trás das portadas de madeira espreitava a luz desenhando sombras sobre as camas. Levantei-me, aconcheguei-os, senti-lhes o cheiro do cabelo e apesar de já ser de dia, fui-me deitar. Fui descansar.

Cheguei, finalmente.

22 comentários:

MCV disse...

Belíssimo.
Abraço, menina.

Aq disse...

Vindo de ti, Manuel... é um verdadeiro elogio. Obrigado.

VdeAlmeida disse...

Há coisas que o tempo não nos consegue tirar: a sensibilidade, o querer bem querer, a emoção transbordante na palavra escrita
Continuas a tocar-me de uma forma profunda. O texto é muito belo, mas o que nele flutua, muito mais.
Beijo, Ana :-)

PARTILHAS disse...

Querida. Minha Querida. Que bom é ler-te assim. Novamente Tu. Cheia dessa Luz, dessa Paz de Força, capaz de derrubar portões, paredes, mundos e tudo o que se atravessar na frente do teu corpo, da tua vontade do teu Ser imenso, que nos invade de curiosidade de força de energia. De ti.
Cheia de força e Paz.
(()) Tantos gigantes, apertados, daqueles, que te fortifiquem o suficiente, para o mundo se despertar para a tua visão de Luz.

Aq disse...

Temos que nos conhecer um dia destes?... Ok. Quando quiseres. É só combinar. Beijinho, Fia.

As tuas palavras emocionaram-me, Yardbird. Temos que parar com isto, senão ficamos ainda mais piegas do que já somos, eheh. Abraço sentido.

Partilhas, amiga... lanças-me um furacão de palavras que me atordoa. Vejo-te feliz por mim, sim. Obrigado. Estou em paz, sim. Tranquila também. Muitos e muitos com pulinhos à mistura e tudo e tudo, eheh.

inconformada disse...

Viste-me a acenar ? :-)
Um regresso... feliz !
Beijo

Aq disse...

Vi, sim, amiga. Na primeira fila, com um sorriso de orelha a orelha, os olhos brilhantes e, não me esqueço. Beijinho grande.

riacho disse...

Os filhos... sempre eles. :-)
O que nos dão corda aos sapatos e fazem relegar a nossa própria pessoa para segundo plano.

Que a cada dia que passe, Ana, esse portão pesado custe cada vez menos a lidar com ele. Um grande beijo.
Manuela

Anónimo disse...

Feliz Natal Aquinha!

Bina 24.12.04

Fátima Santos disse...

que maravilha! que belíssimo texto! é eu não gosto muito destes ditos, mas são tão sinceros, gosteiu tanto! Li duas vezes e comovi-me e vi tudo o que escreveste! Obrigada AQ! Beijinho!

Aq disse...

Riacho, amiga... concordo plenamente. Não me expressada com outras palavras... os filhos, sim. Quanto ao portão... obrigado. Beijinho grande.

Obrigado pelo comentário, Paula. Foi o primeiro, não foi?

Bina... Bina... Boas Festas, para ti também.

Quanto a ti, Seila... fico contente que te agrade aquilo que escrevo, a sério que sim. Beijinho grande.

riacho disse...

(eh eh eh... será mas é um enorme iceberg, AQ?)

Beijo grande e um daqueles bem apertados. :-)

Aq disse...

Eheh!... pois... realmente... rocha, água...
Beijinho, linda.

Luís Almeida Fernandes disse...
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Luís Almeida Fernandes disse...
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Luís Almeida Fernandes disse...
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Luís Almeida Fernandes disse...

Tenho inveja de quem sente o amor único que foi criado para se dar aos filhos.
Esse amor poderoso que modela as pessoas...
Estejas onde estiveres, terás sempre essa sorte.

Aq disse...

É verdade, Luis. É um amor único. Inquestionávelmente incondicional. E enfortece-nos, sim.
Obrigado pelo comentário.

Fátima Santos disse...

e...nunca mais escreveste?! depois deste belíssimo texto onde raio te meteste?! escreve e aparece!
Um grande abraço e, ainda em dia de Festas, :) um Feliz Ano de 2005!

PARTILHAS disse...

Então?
Isto avariou?

Luís Almeida Fernandes disse...

Mais vale ficares uns tempos oculta e regressares em beleza, com um texto como este.
Tudo pela arte, minha querida!

Anónimo disse...

Olá
Parabens plo blog...
www.aminhasombra.blogspot.com