sexta-feira, janeiro 12, 2007

O enjeitado

Rosto queimado pelo sol. Olhos fundos, negros, baços. Franzino nos seus 16 anos. Cabelo ondulado, empastado em gordura por dias e dias sem lavagem. É frequente vê-lo com sapatilhas rotas, ou sapatos com 2 ou 3 cm a mais do que deviam. É este o aspecto rápido de ver, do jovem mais delinquente lá da pequena aldeia.

Passou pelo infeliz momento, na aldeia, mais alcoviteira de todas as aldeias, logo a seguir à infância, que é quando nos começam a responsabilizar pelos nossos actos, tendendo a não desculpabilizar os menos bons… passou pelo infeliz momento, foi assolado pela infeliz ideia, de tentar o seu primeiro roubo. Teve sorte. Apenas teve sorte, a avaliar pela ausência do plano do roubo. Safou-se. Confundiu sorte com habilidade e tentou de novo.

Curiosamente, desta vez planeou, foi menos desajeitado mas, falhou a sorte. Num particular dia, em específica ocasião, um alarme sempre desligado, foi ligado à hora do almoço. Lixou-se. Bastou que tivesse saído do buraco onde se escondeu antes da loja fechar, para fazer accionar o alarme. Ficou preso lá dentro até a polícia chegar. Dizem, dizem as más-línguas, que quando abriram a porta estava pacientemente, encostado aos sacos da ração, com as mãos nos bolsos. Digo, digo eu, adivinhando-o e cedendo à vontade de romantizar esta história, este protagonista, que sorriu à primeira pessoa que apareceu à porta.

Ficou marcado, como se marcam animais com ferros quentes, o pequeno jovem. Hoje, não há módico crime que aconteça na mais alcoviteira de todas as aldeias, a que não lhe seja atribuída autoria.

Desvio os olhos desta folha e reparo nele sem que perceba, já que se encontra de costas voltadas para mim. Claro que não faz uma pequena ideia de que o meu pensamento neste instante, nos que antecederam e nos que ainda faltam, é exclusivamente, dele. Reparo na mão direita sobre o rato, nas unhas contornadas a sujidade. Sigo o movimento do rato no monitor do pc: Arruma imagens que foi buscar à Internet na pasta que acabou de se criar para ele. Junta-as uma a uma. São dele. Conforme juntou ontem, escritos num pedaço de cartão, endereços de correio electrónico que adicionou hoje, mal chegou, à conta que lhe criei. São dele. Vai proteger atentamente, escrupulosamente, as imagens e os endereços. Tão atentamente e tão escrupulosamente como quem estima o último carro que comprou, ou os sofás em pele, o home cinema, o telemóvel topo de gama ou as sapatilhas de marca.

Temos uma história, eu e ele, muito cúmplice, vivida no último verão, que não vou contar agora. Foi com base nessa história que ontem, o convidei para se sentar ao pé de mim depois de ter aceite o meu convite para conversarmos um bocadinho. Afinal, não conversámos. Fui só eu que falei. Ele esteve sempre calado, com os olhos postos em mim. Nunca os baixou. Por isso, os vi brilhar. Brilhar muito. Brilhar até ao limite das lágrimas que ele conseguiu travar. Eu, consegui travar o abraço que se imponha naquele momento.

Uma das maiores surpresas da minha vida, seria este miúdo desiludir-me.

2 comentários:

riacho disse...

Fico ansiosa à espera da outra.

:-)

Anónimo disse...

E eu fico ansiosa à espera da continuação :-)
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